A política de ajuste fiscal implantada neste início do segundo mandato do governo Dilma Rousseff pode agravar a crise e levar o Brasil da atual recessão a um quadro muito mais severo de depressão econômica. Quem alerta é o economista Guilherme Delgado, doutor na área pela Universidade de Campinas (Unicamp), que atuou no Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) por mais de três décadas.

Para ele, a rejeição à adoção do receituário neoliberal no país, na atual conjuntura, é muito mais uma questão de bom-senso do que meramente uma opção ideológica. “As consequências da austeridade fiscal em um momento de crise externa, de desaceleração forte do crescimento interno, de carências básicas de recursos como água e energia e de crise no sistema petroleiro podem ser desastrosas do ponto de vista de causar uma depressão econômica”, afirma.

Delgado até admite que o receituário neoliberal tenha gerado algum resultado positivo em conjunturas específicas, como ocorreu, por exemplo, no início do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A diferença, conforme ele, é que naquela época o setor externo estava em um momento de acelerar as exportações de commodities, a especialidade brasileira, o que não acontece hoje.

“No início do governo Lula, a recessão foi compensada pela aceleração nas exportações. Mas não é este cenário que temos agora. As exportações estão em queda. É só ver o preço do minério de ferro, da soja, do milho... está tudo em queda livre. Por isso, me causa espanto certas pessoas aplaudirem essa política. Aplaudir o quê? Estamos caminhando para uma depressão. E a depressão pega todo mundo”, alerta.

Quem paga a conta?

Mas se a depressão pega todo mundo, por hora é a parcela mais vulnerável da população que continua pagando a conta da crise. De acordo com Delgado, o receituário neoliberal de austeridade fiscal não vai corrigir os problemas herdados do primeiro governo Dilma, como a estagnação econômica e o desequilíbrio da balança comercial.

“Esse conceito de austeridade é bastante discutível, já que alguém sempre vai pagar a conta. E por que, então, escolher assalariados e beneficiários de programas sociais para transferir recursos para uma elite milionária que fica protegida pelo sistema financeiro?”, questiona ele, insistindo que, ao cortar benefícios trabalhistas, o governo Dilma adotou as mesmas políticas que criticou durante a campanha eleitoral.

“Os cortes nas políticas sociais afetaram basicamente o setor mais sacrificado da população, que é o pessoal do seguro desemprego, as pensionistas do INSS. Por que tanto o seguro desemprego quanto a pensão do INSS atendem majoritariamente a população de baixa renda”, esclarece.

Preconceito contra o pobre
Para Delgado, esse tipo de receituário que afeta a renda dos mais pobres é muito mais ideológico do que técnico e, exatamente por isso, tem efeitos econômicos práticos quase nulos. “Para justificar a redução de direitos, o governo buscou no fundo do baú tudo quanto é preconceito contra pobre ou desigual. Passou, por exemplo, a desqualificar as viúvas como se todas elas fossem ‘piriguetes’ que estão atrás dos velhinhos só por conta da pensão. É um discurso muito ruim, além de falso, já que não há nenhum censo demográfico ou previdenciário que o sustente. É fruto só do preconceito”, acusa.

De acordo com ele, a base de dados do próprio INSS mostra que as pensionistas são, em sua maioria, mulheres na faixa etária de 50 a 70 anos, que muitas vezes nunca ingressaram no mercado de trabalho formal, herdaram as pensões do marido e as utilizam para manter seus gastos essenciais.

Ele ressalta que, do universo de cerca de 50 mil pensões pagas pelo INSS, quase 90% tem valor que corresponde de um a três salários mínimos. Só a minoria recebe o teto, que nem é tanto assim, já que soma pouco mais de R$ 4 mil.

“Isso significa uma economia fiscal ridícula e uma ostensiva propagação de preconceito contra  pobre. É a retórica da intransigência. É mais uma forma de buscar um bode expiatório para a crise entre os mais pobres. E isso é muito grave do ponto de vista da cultura, da democracia, da ética social. Um governo popular deveria combater esse tipo de preconceito. E não alimentá-lo”, defende.

Para o economista, movimento semelhante ocorre com a mudança das regras de acesso ao seguro desemprego.  “Você cortar os benefícios para combater distorções é como matar uma mosca com tiro de canhão. Distorções se combate é com medidas pontuais. Ainda mais que o nosso modelo de seguro desemprego é necessário em um país que tem altíssima rotatividade de mão de obra”, afirma.

Ele lembra que 60% da população já está formalmente alijada do INSS  e entre os que são atendidos pelo sistema, cerca de 25% mudam constantemente de emprego, devido a estrutura do mercado brasileiro. “Nessa contexto, você exigir 18 meses de precedência de trabalho para o recebimento do seguro desemprego, que é o que prevê a nova política adotada, é prejudicar o trabalhador”, contesta.

O receituário de Levy

Mesmo concordando que a política econômica traçada no primeiro governo Dilma precisasse de ajustes para corrigir as distorções que resultaram no baixo crescimento econômico e no desequilíbrio das contas externas, o professor está convencido de que as medidas macroeconômicas anunciadas pelo novo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, nada resolvem. “Adotar o receituário neoliberal agora é brincar na beira do precipício. Não há nenhuma sinalização para crescimento desta forma”, avisa. 

Delgado lembra que a primeira medida tomada pelo ministro Levy foi cortar os recursos para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em outras palavras, ele impediu as transferências do tesouro para o banco público, alegando que é obrigação do setor privado financiar investimentos. “O problema é que o setor privado não cumpre este papel e, com isso, o governo limitou fortemente o programa de investimento e concessão de serviço público”, esclarece.

O economista recorda que, na sequência, veio a política de elevação persistente da taxa básica de juros, a Selic, atualmente em 12,25%, que gera consequências como o aumento da dívida pública, o que faz a alegria do sistema financeiro, mas também impacta na redução de investimentos na economia real. No primeiro governo da presidenta Dilma, a Selic chegou a ser reduzida para 7,25%.

Para piorar, ele acrescenta a crise da Petrobrás que já ameaça a saúde financeira das principais empreiteiras do país. Para o economista, a luta contra a corrupção, que é justa, pode aprofundar a recessão e, por isso, precisa ser tratada com agilidade e cuidado. “Essa crise da Petrobrás não pode se arrastar por mais um ano. Os bilhões extorquidos precisam ser cobrados das empreiteiras e dos agentes públicos envolvidos com rapidez, para a vida continuar”, afirma.

Alternativa para o desenvolvimento

Delgado acredita que, mesmo que não exista uma receita de bolo indicando exatamente o que o país deve fazer para voltar a crescer, insistir em políticas já desaprovadas pela experiência brasileira e internacional não gerará resultados diferentes.

A alternativa, segundo ele, passa necessariamente pela manutenção das políticas sociais de proteção aos mais pobres, sobretudo as que protegem direitos trabalhistas, e pela diminuição do vazamento para o exterior de recursos injetado no mercado interno, inclusive via política de elevação do salário mínimo.

“Existe um desiquilíbrio externo grave. Nós estamos com 4,2% de déficit na balança comercial. E qualquer incremento de renda vaza para o exterior. Mesmo as políticas sociais extensivas, mesmo o aumento do salário mínimo, vazam para o exterior. E não há meios da economia crescer com este vazamento estrutural, causado pela estagnação do nosso setor industrial e da consequente e profunda dependência das importações. Mas não adianta cortar isso elevando juros, porque você causa a estagnação do sistema”, avalia.

O professor lembra que a aposta do país na exportação de produtos agrícolas e pecuários está na gênese da crise. “A nossa especialização interna em commodities, que foi apresentada como salvação da pátria, é parte do problema. Nós temos que recalibrar o setor industrial. E isso se faz de várias maneiras. Há muitos estudos no campo da competitividade industrial que precisam ser considerados. Não dá para simplesmente achar que a solução está em medidas macroeconômica como o aumento da taxa de juros, o corte fiscal e a livre flutuação do câmbio”, enfatiza.