Seria um exagero dizer que a Estônia hoje é um país à beira de um ataque de nervos, mas desde a invasão da Geórgia, em 2008, por tropas russas e a guerra civil na Ucrânia iniciada no ano passado por grupos separatistas pró-Moscou há uma crescente tensão que já foi definida como "paranoica" por diplomatas americanos.

Nesse país no Mar Báltico, não são poucos os que acreditam que serão os próximos a entrar na mira expansionista de Vladimir Putin. Dos protestos de Moscou contra o tratamento dado aos russos que vivem na Estônia às constantes invasões do espaço aéreo do país por aviões militares russos, se acumulam os sinais de que uma repetição do roteiro ucraniano pode estar mesmo nos planos do Kremlin.

A agência de inteligência e segurança interna da Estônia, Kaitsepolitseiamet, ou Kapo, afirmou em um relatório do ano passado que "os nacionalistas russos mais ativos obtêm apoio de fundos e agências russos e ganham a vida espalhando as (...) mensagens das operações de influência da Rússia e lutando contra a integração entre os vários grupos étnicos e linguísticos que vivem na Estônia".

Desde 2008, a Estônia prendeu e condenou quatro espiões que trabalhavam para a Rússia. Um deles havia sido o principal funcionário de segurança do Ministério da Defesa. O último a ser pego, em 2013, era um ex-agente da Kapo que passou documentos para os serviços secretos russos.

Assim como a Ucrânia, a Estônia tem um grande número de russos vivendo em seu território - são aproximadamente 25% da população. E, assim como no caso da Ucrânia, o Kremlin se diz insatisfeito com o tratamento dado a esse grupo. No ano passado, a Rússia manifestou no Conselho de Direitos Humanos da ONU "preocupação" com "a segregação e o isolamento" dos russos na Estônia. Com o argumento de que é preciso defender essa comunidade, e também promover a cultura russa no exterior, Moscou todo ano envia ajuda financeira para algumas organizações na Estônia.

De sua parte, a Estônia acusa Moscou de dar dinheiro para políticos e partidos do país. O caso mais conhecido é o de Edgar Savisaar, do Partido do Centro, um ex-primeiro-ministro e atual prefeito de Tallinn, a capital estoniana. Segundo a Kapo, Savisaar recebeu cerca de US$ 2 milhões de uma instituição russa. O prefeito não negou ter recebido o dinheiro, mas disse que se tratava de uma ajuda para a construção de uma igreja.

O desenvolvimento da Igreja Ortodoxa Russa no exterior é uma das metas estabelecidas pelo Kremlin em sua política de "miagkaia sila" ("soft power" em russo, em referência ao termo cunhado por Joseph Nye para definir a capacidade de um país exercer seu poder sobre outros sem recorrer à coerção ou à força militar, e sim atraindo-os por meio da influência de suas ideias e cultura). Dois dos principais instrumentos para essa política criados após a ascensão de Vladimir Putin ao poder são a Fundação Russkiy Mir ("mundo russo"), que tem o objetivo declarado de "promover a língua e a literatura russas ao redor do mundo", e a Agência Federal para a Comunidade dos Estados Independentes, Compatriotas Vivendo no Exterior e Cooperação Humanitária Internacional (Rossotrudnichestvo).

"A Rússia está claramente presente na política, nas empresas privadas e na mídia da Estônia. Isso é uma ameaça enorme", afirma Tiius Pohl, professora do Instituto de Ciências Políticas e Governança da Universidade de Tallinn.

Segundo ela, o problema é agravado porque o governo estoniano nem mesmo tem uma ideia precisa de qual é a parcela da população que tem vínculos fortes com a Rússia - além dos russos que vivem na Estônia, muitos estonianos também têm cidadania russa, mas Moscou não revela a identidade de quem se encaixa nessa categoria.

 

 

Em 2009, ainda sob o impacto da invasão russa na Geórgia, no ano anterior, um telegrama da embaixada americana para Washington, revelado pelo Wikileaks afirmava que "a Rússia continua como a maior ameaça à Estônia" e que o governo em Tallinn tinha uma grande preocupação com a capacidade de defesa interna, "baseada numa percepção quase paranoica de um iminente ataque russo".

Em outro documento americano vazado pelo Wikileaks em 2009, o diplomata estoniano Harri Tiido afirma que "Putin tem uma bronca pessoal com a Estônia", que seria motivada pelo fato de o pai do presidente russo ter sido delatado por estonianos aos alemães durante a Segunda Guerra.

Na apresentação do relatório anual da Kapo de 2014, o diretor da agência, Arnold Sinisalu, escreveu que "os acontecimentos na Ucrânia abriram os olhos de muitos para os verdadeiros objetivo e natureza da política da Rússia para os compatriotas. A Rússia quer expandir o império russo usando os residentes de língua russa como um de seus instrumentos".

O sociólogo Juhan Kivirähk, que há 15 anos realiza pesquisas de opinião pública sobre como a população se sente em termos de segurança, nota um aumento da preocupação em relação à Rússia. "33% pensam que é possível um ataque estrangeiro. Há cinco anos eram aproximadamente 10%", diz.

O consultor de mídia Raul Rebane acha que a Estônia só agora está começando a despertar para o "soft power" russo. "Alguns anos atrás ninguém sabia o que estava se passando. Na guerra de informação, com muita frequência você não sabe que está sob ataque. E, se você não compreende isso, é porque já perdeu a guerra", diz.

Para Rebane, é fundamental que o país desenvolva atividades de contrapropaganda. Por isso, ele apoia a decisão do governo estoniano de abrir até o início de 2016 um canal de TV falado em russo para se dirigir a essa comunidade, que costuma acompanhar por TV a cabo dezenas de canais russos.

Porém, Indrek Treufeldt, apresentador de TV e professor de jornalismo da Universidade de Tallinn, vê limitações nessa iniciativa. "A Emissora Pública Estoniana é uma instituição relativamente pequena, comparada às emissoras russas. Eles têm dinheiro para produções caras de teledramaturgia, entretenimento e notícias. Além disso, muitos [estonianos] de língua russa se identificam como parte da esfera pública russa e têm suas próprias preferências políticas e de celebridades e entretenimento. É difícil competir", diz.

A divisão interna desse país pequeno - com um território de 45 mil km2, área um pouco maior que a do Estado do Rio de Janeiro, e uma população de apenas 1,3 milhão - foi ampliada graças a uma política desenvolvida nos anos 1980 pela União Soviética, que, para sedimentar a sua ocupação. exportou para a Estônia fábricas e até os operários encarregados de colocá-las em funcionamento.

As três décadas que se passaram não foram suficientes para que a Estônia realizasse uma completa absorção desse contingente. No leste do país, algumas regiões têm uma população com cerca de 90% de russos ou estonianos-russos. Até hoje há escolas em que as matérias são dadas em russo - o governo vem desde 2007 aumentando progressivamente as aulas em estoniano. Em Tallinn, a comunidade russa se concentra em bairros da periferia, como Lasnamäe, e é grande a ponto de eleger como prefeito um político de um partido que faz campanha em russo.

Embora a convivência entre estonianos e russos seja amistosa, são duas comunidades essencialmente distintas, com poucos pontos de contato. Uma pesquisa divulgada em 2011 pelo Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, dos EUA, apontou que 81% dos russos declararam que em seu círculo de relações têm somente russos como amigos e conhecidos. Outra pesquisa divulgada em 2011, da Universidade de Tartu, indicou que 50% dos russos têm pouca ou nenhuma integração à sociedade estoniana.

 

Um incidente ocorrido em 2007 mostra que as relações entre as duas comunidades podem ficar tensas. A decisão do governo de transferir de um ponto central de Tallin para um cemitério militar uma estátua em homenagem aos soldados do Exército Vermelho que lutaram na Estônia durante a Segunda Guerra provocou uma onda de distúrbios envolvendo a comunidade russa, que durou dois dias. Embora tenha sido curto, o confronto deixou marcas. "O nível de confiança da comunidade russa em relação ao governo e aos políticos estonianos caiu desde então", diz Juhan Kivirähk. Segundo o sociólogo, há uma resistência aos esforços de integração, vistos pela comunidade russa como uma tentativa de assimilação e eliminação de sua identidade étnica.

A ministra das Relações Exteriores da Estônia, Keit Pentus-Rosimannus, no entanto, não acredita que possa ocorrer no seu país um movimento separatista semelhante ao que surgiu na Ucrânia. "Eu provavelmente não vou estar exagerando se disser que nenhuma das comunidades de língua russa quer ver ou experimentar a dominação da Rússia nos países em que elas atualmente vivem. No fim do ano passado, houve uma pesquisa na Estônia, e a maioria dos entrevistados de língua russa respondeu 'não' à pergunta 'a Rússia tem o direito de proteger seus interesses e ter influência em todo o território da ex-União Soviética' ", diz Pentus-Rosimannus.

A transferência do Soldado de Bronze também causou uma crise diplomática com a Rússia. Dias depois, a Estônia foi vítima de um ciberataque de grandes proporções, que durante três semanas derrubou sites do governo, bancos, mídia e outras organizações, praticamente deixando o país isolado do resto da internet. O governo estoniano culpou a Rússia pelo ataque.

No ano passado, outro incidente voltou a colocar os dois países em confronto. A Estônia diz que um agente do seu serviço de segurança interna foi sequestrado perto da fronteira por homens da russa FSB, sucessora da KGB, que teriam invadido o território do país. Já Moscou diz que o agente cruzou a fronteira sem autorização e foi preso dentro da Rússia.

Em 2010, a Rússia fez exercícios militares simulando uma invasão dos países bálticos. As invasões do espaço aéreo estoniano por aviões militares russos são frequentes.

Com tudo isso, não surpreende o fato de a Estônia ser talvez o único país, ou um dos poucos, a estar cumprindo o acordo entre os membros da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar ocidental) de investir 2% do PIB em defesa. Outros países próximos também estão preocupados com os russos: após ter seu espaço aéreo invadido, a Suécia vai voltar a pôr tropas em uma ilha estratégica, Gotland, e a Polônia pretende comprar mísseis e submarinos para a sua Marinha.

A filiação da Estônia à Otan é apontada pela chanceler Pentus-Rosimannus como um grande fator dissuasor. "A Otan é a mais forte aliança militar no mundo de hoje e não deveríamos menosprezar isso. Já aumentamos a presença da Otan na região. Há forças terrestres dos EUA e da Holanda, e a Espanha mantém uma missão de vigilância aérea na Estônia."

A ministra também destaca que o país tem uma menor dependência econômica em relação à Rússia que a Ucrânia. "Os maiores parceiros comerciais da Estônia são outros países da União Europeia, 72% das nossas exportações vão para a UE e 83% das importações vêm da UE. As exportações do país para a Rússia caíram 15% em 2014", diz.

Ainda assim, há a questão energética. Embora conte com grandes reservas de xisto, 18% do consumo energético da Estônia é coberto com petróleo e gás importados da Rússia, segundo dados de 2013.

E, quanto à Otan, há dúvidas se a organização pode responder com a necessária rapidez a uma ação russa. Em entrevista à agência de notícias Bloomberg em fevereiro, John Deni, professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Academia de Guerra do Exército dos EUA (USAWC), lembrou que a maioria das tropas da Otan na Europa estão no sul e no oeste do continente e que, no caso de não haver uma invasão direta, e sim uma operação disfarçada - como o apoio militar dado aos rebeldes na Ucrânia, sempre negado por Moscou -, a organização "não tem controle operacional em tempos de paz e precisaria esperar por uma decisão dos governos aliados".

O jornalista viajou a convite do governo da Estônia

 

 

Ameaça russa é "paranoia", afirma oposicionista

 

Para a deputada Yana Toom, representante da Estônia no Parlamento Europeu, a Rússia não representa uma ameaça. O que existe é "alarmismo" e "ideias paranoicas" difundidos pelo governo. Toom pertence ao Partido do Centro, que desde 2004 tem um acordo de cooperação com o Rússia Unida, partido de Vladimir Putin.

Valor: Os russos que vivem na Estônia são segregados e recebem tratamento injusto dos estonianos?

Toom: Órgãos do Conselho da Europa, da OSCE [Organização para a Segurança e Cooperação na Europa] e da ONU se referem a vários problemas de grupos minoritários na Estônia. Russos e outros falantes de russo são vítimas de discriminação estrutural no mercado de trabalho estoniano. Suas taxas de desemprego muito maiores não podem ser explicadas apenas pelo seu fraco domínio da língua estoniana. A reforma das escolas das minorias foi mal preparada e dificilmente melhorará a situação geral dos jovens que falam russo. De acordo com o censo de 2011, os falantes de russo têm melhor educação que os estonianos, mas sofrem mais com a pobreza.

Valor: Qual sua opinião sobre as políticas do governo estoniano para a comunidade russa?

Toom: As políticas oficiais sempre deram muita atenção ao ensino de estoniano e a maioria delas ignorou inúmeras questões relacionadas a aspectos políticos e sociais da integração. Como poderíamos promover a integração numa sociedade em que um em cada sete adultos não pode votar em eleições nacionais pelo fato de não ser um cidadão da Estônia? Os estonianos devem se tornar uma nação cívica que consiste de povos que falam línguas diferentes e têm diferentes tradições culturais e religiosas. A assimilação involuntária velada das minorias não deve ser tolerada. Infelizmente, outras forças políticas dominantes são obcecadas com nacionalismo étnico.

Valor: Você acha que a Rússia pode invadir a Estônia?

Toom: Não vejo motivos para a Federação Russa invadir a Estônia. Neste momento, não vejo semelhanças entre o leste da Ucrânia e qualquer região da Estônia.

Valor: Muitos estonianos dizem que a Rússia interfere na Estônia, com espiões e mandando dinheiro para políticos e organizações.

Toom: Não compartilho as ideias paranoicas da coalizão governamental. Não vejo nada de positivo nesse alarmismo. Na maioria dos casos, esses chamados fundos nacionais russos apoiam a língua e a cultura russas no exterior. Num Estado democrático, isso não deveria ser considerado uma ameaça à Constituição. Povos que querem preservar sua língua materna e cultura estão exercendo seus direitos humanos e de minoria.

Valor: A Rússia financia o Partido do Centro?

Toom: Não. Na última campanha, rivais se esforçaram para rotular o Partido do Centro como pró-Rússia. A intenção de normalizar relações com a Rússia não pode ser interpretada como atividade pró-Rússia. Quaisquer afirmações de que a Rússia financiou o Partido do Centro são difamação, não podem ser provadas na Justiça e nossos adversários sabem isso muito bem.