Afastado da vida pública desde que deixou a Secretaria de Negócios Jurídicos da Prefeitura de São Paulo, em 2012, o ex-governador Claudio Lembo continua um provocador. Recebeu a reportagem do Valor com um sorriso e a pergunta "Como vai você e aquele seu jornal burguês?". Aos 80 anos, o advogado dá expediente em seu escritório ao lado do Parque Trianon, leciona duas vezes por semana na Universidade Presbiteriana Mackenzie e mantém o hábito de distribuir ironias à esquerda e à direita.

Ao analisar o momento, Lembo atira em quase todas as direções. Poucos são poupados. Entre eles o presidente de seu partido, o PSD, ministro das Cidades, Gilberto Kassab, e os presidentes da Câmara, Eduardo Cunha, e do Senado, Renan Calheiros, ambos do PMDB.

Para ele, os "equívocos" do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff podem ser tributados ao "instituto maldito da reeleição", que considera nefasta para o país. Não por outra razão, prevê que a reeleição para o Executivo, o voto proporcional e o financiamento de campanha pelas pessoas jurídicas são os alvos de uma reforma política. Do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, diz que se comunica mal, de forma arrogante, "como banqueiro". A Miguel Rossetto, da Secretaria-Geral da Presidência, faltaria a visão de que o mundo mudou e que o purismo que deu origem ao PT não existe mais.

Disparou seu bodoque também na direção dos tucanos, alguns dos quais classificou como "raivosos", com destaque para o senador paulista Aloysio Nunes Ferreira, candidato a vice na chapa derrotada de Aécio Neves: um senador não pode dizer quer ver a presidente sangrar, estoca Lembo "É feio". Sobrou até para a Casa das Garças, centro de estudos em economia dirigido pelo economista e ex-presidente do BNDES Edmar Bacha, "confundida" com "Casa dos Cisnes".

Célebre por "convidar" a burguesia a abrir a bolsa, quando ainda era governador de São Paulo, em 2006, no momento em que o Estado foi sacudido por uma série de ataques comandados pelo PCC, nesta entrevista Lembo volta a atacar a "elite branca" por sua visão "imediatista" e calcada em "interesses pessoais, não coletivos".

A seguir, os principais trechos:

Valor: Há oito anos o senhor disse que a burguesia tinha de abrir a bolsa para amenizar a grande diferença social que havia no Brasil. Algo mudou de lá para cá?

Claudio Lembo: Eu fui profético. Às vezes, Deus fala pela boca dos loucos. Naquela época, aproveitei e falei. Disse que a minoria branca estava extremamente agressiva, por causa do PCC. Agora vejo a minoria branca toda na carceragem da Polícia Federal em Curitiba.

Valor: Mas a parcela que está na carceragem da PF...

Lembo: É a pior.

Valor: ... é uma minoria dentro da minoria.

Lembo: Felizmente, a burguesia brasileira é maior. É bom que seja. A que está lá é a mais ativa, a que mais viciou a máquina do Estado.

Valor: Esse não é um fenômeno recente. Ele se agravou?

Lembo: Óbvio que os grandes empreiteiros, desde o tempo do Império, são sempre os mesmos. É uma endemia complexa e complicada. Não é brasileira, é internacional, mas a brasileira é pior. Nós tivemos um período da vida pública brasileira em que havia um planejamento de obras. Bem ou mal, havia. O regime militar pode ter cometido erros na área dos direitos políticos, dos direitos humanos. Mas indiscutivelmente havia racionalidade de pensar em projetos. Isso foi desmontado com a redemocratização. O governo do PSDB, de Fernando Henrique Cardoso, desmontou o que era planificação. Hoje o Estado brasileiro não tem nada de planejamento. É o empreiteiro que leva o projeto que interessa a ele e nem sempre ao Estado nacional. Até admito que a privatização deveria ter sido feita em alguns espaços, não em todos, mas acho que houve excessos.

Valor: A crise da Petrobras é uma decorrência natural disso?

Lembo: O caso da Petrobras é profundamente grave. A Petrobras é o produto de lutas de gerações. Sou de uma geração que lutou pelo "O petróleo é nosso", até ingenuamente, e vejo com amargor o que está acontecendo. Mas também aí há uma interrogação: onde estava a CVM? Onde estava a auditoria? A direção ou o conselho de administração tinha de perceber que havia investimentos excessivos em determinadas áreas. O Ministério Público, a Polícia Federal e a Justiça Federal estão se portando com muita dignidade. Um exemplo mundial de tanto rigor e racionalidade na exposição dos fatos.

Valor: Esse episódio tem uma participação importante das empreiteiras, que o senhor acabou de citar como "planejadoras" do Brasil. A origem da crise está aí?

Lembo: Primeiro a gente precisa analisar a mudança da 8666 [Lei de Licitações], no governo Fernando Henrique, permitindo à Petrobras que não fizesse licitação, apenas chamada. Acho que aí está o primeiro erro. Deu dinâmica à Petrobras, mas deu também uma liberdade muito grande. Outro ponto foram os exageros do governo Lula, que acreditou que o Brasil era uma grande potência. O Brasil não é uma grande potência. A área de petróleo é muito complexa. Com o pré-sal, enlouquecemos. Se no Mar do Norte não estão explorando petróleo com grande ativismo, por que teria de ser no Atlântico Sul? Ou ingenuidade ou malícia. Excesso de ingenuidade é má-fé.

Valor: A corrupção também foi exacerbada nesse período?

Lembo: Foi. Evidentemente, foi. E não só na Petrobras, mas também em outras áreas.

Valor: Quais?

Lembo: Se levantarem as tampas, vai ser muito complicado. A burguesia não quer que tampas sejam levantadas. Basta a Petrobras.

"A mudança da Lei 8666, feita durante o governo FHC, permitiu à Petrobras que não fizesse licitação"

Valor: A "elite branca" à qual o senhor se referiu está nas ruas, nas manifestações contra o governo Dilma?

Lembo: Muito. Um percentual elevado. Quem viu a avenida Paulista no domingo [15 de março] viu a classe média. E é bom que ela se movimente. A classe média é muito parada, muito sem vibração política. Mas ela está sendo injusta, porque ganhou muito no período Lula-Dilma. Eles não mexeram no bolso da classe média. Ela tem objetividade, uma nítida visão de interesse pessoal, nunca coletivo. E está apavorada. Quer ganho, mas não quer risco. Por isso, pede para as Forças Armadas voltarem. A burguesia está na rua. O povão, ainda não. Há alguma coisa em áreas específicas, mas é pouca gente. O movimento sem-teto (MTST) eu acho muito ativo...

Valor: Ele tem representatividade?

Lembo: Representatividade não sei. Acho que não. Mas tem uma massa de pressão grande. Se as periferias das grandes cidades, particularmente São Paulo, se levantarem, vai ser um problema muito sério. Há muita miséria em torno de São Paulo. É extremamente angustiante. Creio que vamos ter um momento difícil para o Brasil daqui para os próximos meses. Algo que vai criar interrogações muito grandes é a ação do ministro Levy. Ele tem sido um pouco autoritário ao se manifestar. Impõe o que ele quer. Parece o regime militar.

Valor: O que senhor quer dizer? Que não há possibilidade de diálogo?

Lembo: Mais do que isso. O Levy está falando um pouco como banqueiro. A verdade é a verdade dele. E como na democracia não há uma verdade única, é complicado. O Movimento dos Sem-Teto tinha um único boneco [nas manifestações do MTST do dia 18]. Era do Levy. Não era da Dilma, não era do Congresso. O Levy vai virar símbolo. Acho ruim para ele.

Valor: A ação do ministro afeta a governabilidade?

Lembo: Afeta o Levy. O governo, não. Não interessa a ninguém a queda da Dilma. Criaria um trauma. E mais: ela está aprovando tudo no Congresso. Ela apanha, mas aprova. O Congresso tem verbalizado, mas está se mantendo equilibrado. O parlamento pode ter seus defeitos. Tem muitos. Mas ele tem um sentido de brasilidade e necessidade de equilíbrio.

Valor: O senhor pensa realmente assim? Olhando para o Congresso o que se vê é a oposição beligerante e uma base aliada não tão aliada...

Lembo: Ela não se mostra aliada assim, mas também não assume o antagonismo total. Acho que a Dilma, a quem admiro muito pessoalmente, tem pela frente dois homens extremamente qualificados: Renan [Calheiros] e [Eduardo] Cunha. O Cunha lembra um pouco o Carlos Lacerda. É o carioca inteligente, pertencente àquela elite médica carioca, que é boa, intelectualmente bem preparada. O Cunha é sádico, duro, inteligente e tem carisma. E o Renan é outro homem inteligente. De outro tipo, mas inteligente. Então, se a Dilma me procurasse um dia eu diria: "Vá ler Maquiavel. Quando você não pode vencer o inimigo, aproxime-se dele". Foi ingenuidade ter lançado candidato próprio para a Câmara e o Senado.

Valor: Como o PMDB pode ser inimigo sendo o principal aliado?

Lembo: Ele não é inimigo. O PMDB é um partido que caracteriza bem as qualidades e os defeitos dos brasileiros. Sabe dialogar, sabe se impor nos momentos certos, sabe ocupar a máquina do Estado. Eles são os únicos que permaneceram desde a redemocratização. Eles têm uma linguagem popular, coisas que os tucanos não têm. Tucano não sabe transmitir e é odiento. Alguns senadores tucanos do Senado nutrem ódio que não é próprio da democracia. Um senador não pode dizer "quero vê-la sangrar". É feio.

Valor: Estimular ainda que veladamente a discussão sobre o impeachment da presidente é um desejo real ou jogo de cena?

Lembo: É a postura real de alguns setores do PSDB. Particularmente aqueles que foram diretamente vencidos na campanha eleitoral. Estão muito cheios de ódio.

Valor: Então a tese do terceiro turno tem validade?

Lembo: É nítida. Muito nítida. Mas não é todo o PSDB. Também tem gente equilibrada. O governador de São Paulo não tem entrado nessa conversa.

Valor: Mas ele é um candidato quase natural à sucessão presidencial... Interessaria a ele participar dessa discussão?

Lembo: Mas é o estilo dele. O Geraldo é um pouco o Getúlio [Vargas]. Ele é equilibrado, sensato...

Valor: Onde o senhor acha que o rancor vai desaguar?

Lembo: É uma pergunta complexa. Eu teria que ser vidente. Se a Dilma conseguir se equilibrar, ela leva os quatro anos de um governo difícil, de grandes sacrifícios, e chega ao fim. Não vejo condições psicológicas para o impeachment. Acho muito, muito difícil. Mas as manifestações de rua, apoiadas eventualmente pelo PSDB, erraram quando pediram o apoio das Forças Armadas. Os militares não querem. Eles sabem que foram vítimas da burguesia, que fez o golpe de 1964 e usou o instrumental das Forças Armadas. Eles entraram, exageraram, mas sempre apoiados pela burguesia. Não vão mais fazer isso nunca mais.

Valor: O senhor acompanhou as manifestações [de 13 e 15 de março]?

Lembo: Sim.

Valor: Na rua?

Lembo: Pela televisão.

Valor: Elas guardam alguma semelhança com as de junho de 2013?

Lembo: É outro momento. Aquilo foi articulado pela meninada do passe-livre. Essa me parece mais de gente amargurada, com um pouco de ódio.

Valor: O senhor vê o país socialmente mais dividido que há oito anos, quando propôs que a elite abrisse a bolsa?

Lembo: Muito mais. Naquela época, o PCC, burramente, atacou o Estado. E não foi nada. Queimou um ou dois ônibus, mas apavorou a burguesia. As mensagens por celular estavam no começo. Isso motivou uma comunicação desesperada. Havia essa questão da segurança pessoal. Hoje está todo mundo na rua. Todo dia tem tiroteio e ninguém mais liga. Acostumaram.

Valor: Hoje o crime...

Lembo: Avançou muito mais... Todas as modalidades de crimes. E o PCC está forte...

Valor: Por que o crime recrudesceu?

Lembo: Sua pergunta exigiria tratamento sociológico profundo. O PCC tornou-se mais ativo e mais organizado. Ele retirou aquela ingenuidade de 2006 e ocupou todos os espaços, principalmente em relação à droga. Organizou-se muito bem, e a coisa é muito mais grave do que se pensa.

Valor: A política de segurança piorou?

Lembo: É complexo. Havia um excesso das polícias militares, eventualmente. A política de direitos humanos levou a uma posição de recolhimento da tropa. Isso fez com que a criminalidade crescesse. Por sinal, a PM de São Paulo está muito violenta.

Valor: Nos protestos de 2013 os manifestantes reclamaram muito da PM paulista.

Lembo: Agora as criancinhas estão beijando policiais. Não entendo o Brasil. É um país ciclotímico.

Valor: Como o senhor avalia o governo da presidente Dilma?

Lembo: No primeiro mandato, ela quis, não sei se visando o instituto maldito da reeleição, ser cada vez mais sensível à sociedade, ao povão. E com isso fez benesses. Benesse custa caro. A condução da economia foi muito complexa, difícil. Acho até que meio equivocada. Foi socialmente bom e economicamente mal.

Valor: As pesquisas mostram que a baixa renda ainda não se manifestou muito intensamente.

Lembo: Ainda não chegou lá. Daqui a pouco chega. O que a burguesia não percebeu, porque é muito imediatista, é que se a vitória não fosse da Dilma ia ser muito pior o movimento de rua. Ia ser uma coisa muito pior, agressiva.

Valor: Como o senhor vê a tese do estelionato eleitoral? Dilma está fazendo o que seu adversário pregou?

Lembo: O adversário não pregou o que está sendo feito. Ele falava numa economia alegre, leve, do Rio de Janeiro... da Casa dos Cisnes...

Valor: Casa das Garças.

Lembo: Isso. Aquela gente de sempre, que agrada profundamente o sistema financeiro. Acho que se o Aécio ganhasse o quadro social seria muito mais grave, porque o atingido seria outro público.

Valor: Como retomar a paz social no país?

Lembo: Com a canseira. Isso aqui vai cansar. O país vai ter que purgar, vai ter que fazer análise. Vão ter que se integrar os grupos sociais todos. Brasília tem que se entender. O Executivo tem que se entender com o parlamento.

"Agora as criancinhas estão beijando os policiais. Eu não entendo o brasileiro. É um país ciclotímico"

Valor: A relação do Congresso com a Presidência ainda pode levar o mandato de Dilma a bom termo?

Lembo: Acredito, sim. Mas acho difícil. Depende muito dela e dos ministros. Não pode um ministro depois de uma passeata do tamanho da de São Paulo dizer "ah, foram os vencidos". Não é verdade. Já não há eleitores. Agora somos todos cidadãos analisando. Faltou humildade ao ministro Rossetto. Enquanto o José Eduardo Cardozo foi muito bem, o Rossetto foi muito mal. O PT dos anos 1980 acabou. Não existe mais PT da sacristia, do sindicalismo. Virou PT da penitenciária. Então tem que ter humildade. Não dá para falar mais com a sociedade com aquela têmpera de comandante Che Guevara.

Valor: Essa crise de entendimento vai mudar o quadro partidário? O sr. acredita em reforma política?

Lembo: Eu só vejo duas reformas possíveis. Posso errar, mas acho que o fim da reeleição é inevitável. A reeleição foi o maior desserviço à história política e administrativa do Brasil. Foi o maior estelionato eleitoral. Desde 1890, quando foi elaborada a Constituição republicana, nós nunca tivemos reeleição. Aí veio a grande figura do doutor Fernando Henrique Cardoso. Não sei o que ele fez no Congresso com o Sergio Motta e conseguiu a reeleição. Só deu imoralismo, safadeza, corrupção. Ela vai cair. Felizmente vai cair. Outro é voto proporcional. Não pode haver coligação no voto proporcional, porque desintegra os partidos e não permite dar identidade aos partidos. Um terceiro caso é o financiamento de empresa, que também cai, mas vai criar caixa 2, um problema muito sério.

Valor: Muda o quadro partidário?

Lembo: O quadro diminuirá com a eleição, o fim da coligação. Uma espécie de seleção natural.

Valor: O senhor considera a reeleição ruim, mas ela existe em outros países. Por que aqui ela é pior?

Lembo: Vamos com calma. Nos Estados Unidos é gravíssima a reeleição. Depois do Roosevelt, que se distraiu em ser ditador mediante a reeleição, que fez coisas horríveis, com mudança na Suprema Corte etc., só tem uma reeleição.

Valor: Aqui também.

Lembo: É outra formação cultural. E ainda assim dá galho. Veja como o Obama está sofrendo no segundo mandato. É uma só e o ex-presidente não pode mais ser candidato. Acho genial isso. Tem que haver novos figurantes. Na América Latina, onde tem reeleição o que dá? Chávez com as loucuras dele. Deu Evo Morales...

Valor: O fim das doações de empresas para campanhas deve gerar um quadro de atividade oculta pior do que o que existe hoje?

Lembo: Sim. E isso me assusta. O grande problema é que a eleição brasileira ficou muito cara. Os números são assustadores. O marqueteiro destruiu a política no Brasil. É perigoso citar o passado, mas a Lei Falcão, dos milicos, era melhor do que isso que está aí, porque isso é imoral. Isso sim é desigual. O marqueteiro da Dilma custou R$ 90 milhões. Não é possível.

Valor: Qual é a alternativa? Financiamento público?

Lembo: Não. Pessoa física. E diminuir o jogo da televisão. Agora o marqueteiro cria um mundo de sonho, uma coisa absurda.