O equacionamento da dívida dos clubes brasileiros (cerca de R$ 3,7 bilhões) passa por medidas que transcendem a capacidade das agremiações de honrar tais compromissos. É um bolo que se formou ao longo de anos de irresponsabilidade administrativa, de desconsideração a elementares princípios de gestão, fermentado pelo deletério pressuposto da impunidade — uma certeza que tem levado cartolas e outros personagens desse mundo de fantasia a resistir a quaisquer mudanças nas regras do jogo.

Diante da gravidade de um quadro em que está em risco o futuro dos clubes, dirigentes presos a esses maus costumes voltam as costas para a realidade. Em lugar de encarar o problema de frente, agem como avestruzes, na clássica metáfora de quem procura ignorar o que está à sua volta. Infelizmente, a opção tem funcionado, mas seus limites se exaurem na medida em que a teimosia só adia o necessário, e inevitável, acerto de contas. Procrastina e incha ainda mais o contencioso, à custa do visível processo de estrangulamento financeiro das agremiações.

Pior: há, fora do futebol, quem alimente a cegueira. Caso, por exemplo, da oportunista inclusão de um dispositivo, em matéria totalmente estranha ao tema (uma medida provisória em trâmite no Congresso, que trata primordialmente de importação de equipamentos), que, na prática, anistia as agremiações. O relator da MP 656, senador Romero Jucá (PMDB-RR), incluiu no texto, aprovado pelos parlamentares, artigos que afrouxam a responsabilidade dos clubes na equação de suas dívidas e instituem uma série de benefícios fiscais, sem a devida contrapartida (compromisso com gestão transparente, fairplay financeiro que assegure o recolhimento de impostos em dia e puna o atraso de pagamento de salários etc.).

Aprovada no afogadilho das sessões de fim de ano, por suposto sem discussões mais aprofundadas, a MP 656 vai de encontro ao bom senso e a ações que sinalizam, e não só no Brasil, a irreversibilidade da mudança dos protocolos de gestão dos clubes. Na Europa, a Uefa puniu recentemente quatro agremiações, afastando seus times de competições da liga, por desrespeito ao fairplay financeiro. No Brasil, a CBF antecipa que também punirá quem não recolher impostos ou atrasar salários — providência saneadora, mas que depende da aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte, em tramitação no Congresso. Por sua vez, a Fifa criou limites para a ação de investidores na contratação de jogadores.

São, todas elas, ações que anunciam novos tempos no futebol, e impõem aos clubes uma adequação à realidade. No caso específico da MP 656, a ameaça mais imediata, por implicar a manutenção de um status quo retrógrado, é imperioso que a presidente Dilma vete a farra da anistia embutida nos dispositivos contrabandeados para o texto. É providência essencial para estabelecer a responsabilidade na administração dos clubes brasileiros.

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O futebol pede socorro

 

A importância dos clubes tradicionais de futebol para a cultura de seus países costuma ser bem mais ressaltada no exterior do que no Brasil. Constatamos isto ao ver a reação do ministro de Assuntos Exteriores da Espanha, José Manuel Garcia Magallo, diante da investigação aberta pela Comissão Europeia (órgão executivo da União Europeia), contra os principais clubes de seu país.

Sem hesitação, Magallo disse que o governo espanhol vai “batalhar até o final na defesa dos clubes envolvidos”; e registre-se que entre os clubes que receberam ajuda do governo estão Barcelona, Real Madrid e Bilbao, referências na área de gestão esportiva. Reconheça-se: esses clubes não podem ser acusados de serem modelos de ineficiência.

Ora, no Brasil, possivelmente mais do que na Espanha, o futebol é assunto de interesse nacional. Ou, no mínimo, deveria ser. Desde 1895, quando aconteceu a primeira partida de futebol realizada no Brasil, promovida por Charles Miller, os clubes ajudam a popularizar a prática desportiva. Especialmente o Vasco da Gama, que na segunda década do século 20 abriu as portas para negros e operários. O vínculo entre cada torcedor e seu clube é perene, e diferente de todos os outros vínculos existentes. O futebol é parte da identidade nacional, além de movimentar bilhões de reais por ano e gerar milhares e milhares de empregos.

Portanto, não é correto assistir de braços cruzados a uma crise que pode ser letal; não se trata aqui de gostar ou não de futebol, mas de reconhecer sua importância estratégica, econômica e cultural para o país. Neste sentido, veio em boa hora a aprovação, no final de 2014, da chamada MP dos clubes.

Afinal, são os clubes que, a cada ano, a um custo alto, revelam os novos talentos do nosso futebol. Um departamento de futebol de divisão de base em um clube profissional conta com dezenas de profissionais qualificados: professores de educação física, médico, dentista, nutricionista, psicólogo, assistente social, agentes de hotelaria, e, quando desponta uma revelação, o clube quase nada ganha com isso, graças a uma legislação absurda — para falar apenas de um aspecto do relevante serviço que os clubes prestam ao esporte e à nação.

Há quem critique a MP dos clubes, alegando que a falta de contrapartidas e, supostamente, de exigências claras de transparência no uso do dinheiro das agremiações estimularia possíveis desmandos. São, com certeza, preocupações justas.

Mas é preciso que as medidas sejam adotadas o quanto antes. Devemos encontrar o caminho para o equilíbrio entre a transparência e a austeridade e a rapidez necessária para agir. Isto não pode atrasar. Nosso futebol, o futebol dos 1 a 7, tem pedido socorro — e o Brasil precisa atender ao pedido.