Não, a delação premiada não representa um avanço. Ela se inscreve nos registros da degradação moral, jurídica e política. Premiar a traição é a forma mais imoral e antiética do agir estatal. Como um Estado que negocia e premia uma traição pode exigir um comportamento ético de seus cidadãos? Desde muito tempo, passando pelas mais conhecidas traições premiadas — de Cristo por Judas e de Tiradentes por Joaquim Silvério —, até os dias de hoje, o lugar histórico ocupado pelos traidores sempre foi o mais baixo degrau da ética e da moral. Por isso, Miguel de Cervantes escreveu, em Dom Quixote, que “ainda que agrade a traição, ao traidor tem-se aversão”.

No entanto, fosse o problema restrito ao campo da moral talvez não houvesse tanta rejeição. Mas ele vai além: normatizou-se a traição premiada, transformando-a em lei. Sob o caricato nome de colaboração premiada, instituiu-se definitivamente no Brasil, em 2013, o incentivo e a premiação da traição, ao custo, é preciso dizer, da validade da Constituição como lei maior. Por exemplo, o delator, para gozar da premiação por sua traição, há, por lei, de abrir mão de seu direito fundamental ao silêncio e de não produzir prova contra si mesmo, o que contraria princípios estabelecidos na Constituição e nos pactos e tratados internacionais sobre direitos humanos. Sabe-se agora que na operação policial chamada Lava-Jato, os procuradores de Justiça exigiram como condição para a realização do acordo de um dos delatores que ele renunciasse ao seu direito de defesa — desistindo de impetrar habeas corpus e de questionar quaisquer ilegalidades processuais. E assim rasga-se a Constituição e joga-se no lixo a história — derramada com sangue — da construção dos direitos humanos e da constitucionalização do direito. E mais, diferentemente dos EUA, onde os juízes são obrigados a aplicar os benefícios estabelecidos no acordo de delação, aqui no Brasil, se os juízes acharem que aquilo que foi delatado não foi suficiente, estão eles desobrigados de cumprir os termos do acordo.

 
 
 
 

No campo político, a delação premiada é também um grande fracasso. Ela fracassou na Itália — de onde foi importada —, já que vários processos oriundos da Operação Mãos Limpas foram anulados, muitas pessoas foram acusadas indevidamente e absolvidas e o nível de corrupção lá continua muito alto. Ou seja, fracassou em seus propósitos. Além de tudo, a valorização que se dá à delação premiada hoje representa o mais claro sintoma da incompetência das instituições de investigação e de acusação — polícia e Ministério Público — que não conseguem por conta própria desvendar a autoria de crimes, dependentes que estão de confissões e delações. Portanto, a celebração geral em torno da delação premiada representa, sem dúvida, um triste capítulo da história do nosso ainda jovem Estado democrático de direito.

João Bernardo Kappen é advogado