Apesar de o Ministério da Saúde afirmar ter elevado os repasses, reajustado a tabela de remunerações por procedimentos e criado linhas de crédito, as Santas Casas e hospitais filantrópicos do país possuem dívidas de pelo menos R$ 17 bilhões com funcionários, fornecedores, bancos e órgãos públicos. Responsáveis por quase metade das cirurgias e internações feitas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), essas unidades viram nos últimos nove anos sua dívida crescer seis vezes: de R$ 1,8 bilhão em 2005 (o equivalente a R$ 2,9 bilhões) para o valor atual, considerada a inflação do período.

Em 19 de dezembro, a Santa Casa de São Paulo, maior hospital filantrópico da América Latina, suspendeu por tempo indeterminado consultas e cirurgias. A unidade (que faz 31 mil consultas e quatro mil cirurgias por mês, e tem uma dívida estimada em R$ 773 milhões) atrasou o salário dos funcionários em dezembro e perdeu o serviço de limpeza por falta de pagamento.

Em Santa Catarina, o Hospital São José de Criciúma, um dos maiores do estado, anunciou que, a partir de 22 de dezembro, só atenderia emergências. A Santa Casa de Lagoa Santa, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, está fechada desde abril.

Não faltam exemplos de hospitais filantrópicos em apuros, muitos causados por problemas na gestão. A Santa Casa do Rio sofreu intervenção ano passado. Em maio, funcionários disseram que há cinco meses não recebiam salário.

O hospital entrou em crise após denúncias de fraudes em cemitérios geridos pela instituição. O provedor Dahas Zarur (morto em novembro) foi afastado do cargo em meio a uma investigação do Ministério Público sobre desvio de verbas. O hospital foi interditado pela Vigilância Sanitária em outubro de 2013, devido a denúncias de abandono e falta de equipamentos, e só foi reaberto em junho, após parceria com a Universidade Estácio de Sá.

A Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB) estima que cerca de 1.700 dos 2.100 hospitais associados operam no vermelho. Administradores reclamam que o Ministério da Saúde, principal fonte de renda desses hospitais, paga um valor defasado pelos procedimentos realizados gratuitamente. Segundo o presidente da entidade, Edson Rogatti, o déficit causado pelo SUS é de R$ 5,1 bilhões por ano.

O governo, porém, alega que tem atualizado a chamada "tabela SUS" e que aumentou o investimento extra. Além de pagar pelos serviços prestados, o ministério afirma ter investido R$ 3,8 bilhões nas Santas Casas ano passado. Nem sempre o dinheiro chega a tempo. Em novembro, o ministério atrasou em nove dias o pagamento de R$ 2,8 bilhões do Fundo Nacional de Saúde que cobriria procedimentos de média e alta complexidade feitos pela Santa Casa.

- Há o problema do subfinanciamento do SUS, mas não é só isso. Os hospitais já têm dívidas altas. Eles recorrem aos bancos e pegam empréstimos para pagar os salários e os fornecedores. Mas depois não conseguem pagar esses empréstimos. O dinheiro do SUS é carimbado, não pode ser usado para quitar débitos em bancos. Aí vira uma bola de neve - diz Rogatti.

Investigações indicam que a dívida também é causada por corrupção. Em 2009, uma análise da Controladoria-Geral da União (CGU) em 28 contratos firmados com seis Santas Casas encontrou falhas em licitações, superfaturamento em compras, conluio entre empresas participantes de concorrências e equipamentos adquiridos, mas não encontrados.

 

DENÚNCIAS DE SUPERFATURAMENTO

Em São Paulo, a administração da Santa Casa está envolvida em denúncias de superfaturamento na compra de medicamentos e materiais de construção para obras, segundo uma auditoria independente e uma investigação do Ministério Público. Foram encontrados indícios de irregularidades em contratos com empresas terceirizadas responsáveis pelo estacionamento, pela limpeza e pela lavanderia, além de problemas na venda e no aluguel de imóveis.

A falta de dinheiro gerou também uma crise política dentro da Santa Casa. Na semana do Natal o provedor do hospital, Kalil Rocha Abdala, pediu afastamento do cargo por 90 dias. Ele também era responsável pelos departamentos jurídico e imobiliário. Havia uma pressão de integrantes da diretoria para que ele saísse. Na mesma semana, o governo do estado transferiu R$ 3 milhões para a entidade, e o hospital entrou com um pedido de empréstimo no BNDES.

Diretores da instituição ameaçaram cancelar o atendimento O promotor Arthur Pinto Filho, da Promotoria da Saúde Pública, disse que pedirá a renúncia de Kalil ao final de uma ação civil pública instaurada em julho, quando a Santa Casa fechou o pronto-socorro. A unidade foi reaberta no dia seguinte, após a liberação de R$ 3 milhões do governo do estado. O inquérito é feito em parceria com o Ministério Público Federal, já que a principal fonte de verbas do hospital é o SUS.

Nem todos os hospitais filantrópicos estão quebrados. A Santa Casa de Maceió é considerada uma referência por não ter dívidas milionárias. A unidade não tem pronto-socorro e tenta equilibrar o déficit gerado pelo atendimento do SUS com parcerias com convênios médicos e consultas particulares. Segundo o hospital, a cada dez pacientes atendidos, quatro são particulares ou de planos de saúde. Eles representam 65% da receita do hospital. Os outros 35% são bancados pelo SUS.

Rogatti chega a propor que os hospitais filantrópicos deixem gradativamente a rede pública:

- A situação é muito difícil. Vou propor aos nossos associados parar de atender o SUS e ficar só com convênios e particulares, que pagam até seis vezes mais do que o governo. Mas o fechamento das Santas Casas seria um colapso na Saúde pública do Brasil.

O Ministério da Saúde diz que os repasses para as Santas Casas cresceram 57% em quatro anos e que essas unidades receberam R$ 13,6 bilhões ano passado. Frisa que o principal reforço no orçamento se destina a um plano de incentivo, que representa 30% do total de verbas e está fora da tabela SUS. E alega que reajustou cerca de mil procedimentos na tabela.

Segundo o ministério, o Programa de Fortalecimento das Santas Casas (Prosus), criado em outubro de 2013, prevê a quitação dos débitos tributários das instituições que ampliarem os atendimentos de exames, cirurgias e atendimentos a pacientes do SUS. A estimativa é que os débitos tributários desses hospitais somem mais de R$ 15 bilhões. A pasta afirma que 265 instituições enviaram propostas para participar e que 188 já tiveram o pedido analisado e aceito.

O governo frisa que em 2014 ampliou o programa que previa, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), empréstimos para financiar a dívida das Santas Casas. A meta é desburocratizar os empréstimos. O ministério não explicou os motivos do atraso dos repasses do Fundo Nacional de Saúde. Disse que liberou R$ 2 bilhões no último dia 16 para o custeio dos serviços de média e alta complexidade e que o restante será pago nas próximas semanas.

UNIDADES RESPONDEM POR 40% DO ATENDIMENTO DO SUS

Os quase 500 anos de existência das Santas Casas no Brasil são suficientes para entender o papel dessas instituições filantrópicas no sistema de Saúde do país. Da construção da primeira Santa Casa, em 1539, em Olinda (PE), até a consolidação da Santa Casa de São Paulo como um dos maiores hospitais públicos da América Latina, tais instituições se tornaram peça-chave no Sistema Único de Saúde (SUS).

 

Modelo criado em Portugal, no século XV, esses hospitais são hoje responsáveis no país por 40% do atendimento do SUS. Com 2,1 mil unidades filantrópicas espalhadas em todos os estados, respondem pela metade dos leitos públicos disponíveis à população, cerca de 155 mil.

De acordo com relatório da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, as Santas Casas são ainda responsáveis por oito milhões de atendimentos por ano. Também fazem a manutenção de unidades hospitalares em municípios com até 30 mil habitantes. Hoje, cerca de 1,3 mil unidades estão nessas localidades. A maioria, no Sudeste (52,8%).

Em 1988, a Constituição Federal reconheceu o papel das instituições no sistema de Saúde, conferindo-lhes um tratamento tributário diferente, com isenção de impostos . Contudo, hoje as instituições filantrópicas estão mergulhadas em dívidas. Em 2013, o governo federal concedeu um perdão fiscal às instituições, renegociando mais de R$ 5 bilhões em dívidas. Apesar do alívio, a situação não melhorou.

 

Revelada máfia de próteses que lesou redes pública e privada

 

 

Um esquema criminoso entre médicos e empresas de próteses que, só no plano de saúde dos Correios do Rio de Janeiro causou um prejuízo de R$ 7 milhões, foi denunciado ontem em reportagem exibida pelo “Fantástico”, da Rede Globo. A investigação, feita nos últimos três meses, demonstrou que os profissionais recebem comissões para usar o material de determinados fornecedores, indicam cirurgias desnecessárias e utilizam liminares com orçamentos superfaturados para forçar o Sistema Único de Saúde (SUS) e os planos de saúde a pagarem pelo procedimento.

Segundo a reportagem, o paciente — após esperar na fila do SUS — é encaminhado pelos médicos a um escritório de advocacia. Esse escritório fica responsável por elaborar uma liminar, com orçamento superfaturado, para pedir à Justiça que o plano de saúde ou o Estado seja obrigado a pagar a cirurgia.

O ex-assessor da diretoria regional dos Correios João Maurício Gomes da Silva, que participava de um esquema como esse e assinou acordo de delação premiada, contou o caso de um procedimento que deveria custar, no máximo, R$ 200 mil, mas acabou saindo por R$ 1 milhão ao plano. Para justificar o valor superfaturado, era incluído o valor de materiais não utilizados. Segundo o “Fantástico”, foram criadas empresas de fachada para assinar os orçamentos.

Para tentar combater o número de cirurgias indicadas sem necessidade, durante um ano, o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, utilizou um grupo de médicos para analisar os pedidos de operação de coluna que chegavam ao hospital. Dos cerca de 1.100 pacientes, menos de 500 tiveram indicação cirúrgica. Com objetivo semelhante, outro hospital do Rio Grande do Sul também se valeu de “fiscais de cirurgia”. Na ocasião, verificou-se que 35% dos encaminhamentos eram desnecessários.

Os médicos envolvidos no esquema recebiam comissões que variavam de 20% a 50% para indicar a prótese de determinados fornecedores. A fraude era altamente lucrativa, como revelou uma funcionária de uma clínica que participava do esquema:

— Aquilo ali parecia uma quadrilha. Uma quadrilha agindo e lesando a população. Um exemplo que eu tenho aqui: R$ 260 mil de cirurgia, R$ 80 mil pra conta do médico. Tem uma empresa pagando R$ 590 mil de comissão pro médico no período aqui de seis meses.

Para despistar a Receita Federal, as empresas de próteses que pagavam comissões pediam aos médicos que assinassem contratos de consultoria para que fossem incluídos na declaração do Imposto de Renda. Além dessa irregularidade, as empresas de prótese também ofereciam maneiras de fraudar licitações em órgãos públicos. As empresas sugeriam que, no edital, fossem incluídos serviços ou produtos exclusivos de determinadas empresas. Assim, as outras concorrentes eram automaticamente eliminadas da disputa.

As empresas citadas pelo “Fantástico” na reportagem— Oscar Skin, Totalmedic, Life X, Orcimed, IOL, Brumed, Strehl e Intelimed — e os médicos gaúchos Fernando Sanchis e Henrique Cruz negaram todas as acusações.