São paulo

O Brasil registrou durante o primeiro governo da presidente Dilma Rousseff um aumento de concentração de terras em grandes propriedades privadas de pelo menos 2,5%. Dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) revelam que, entre 2010 e 2014, seis milhões de hectares passaram para as mãos dos grandes proprietários - quase três vezes o estado de Sergipe. Segundo o Sistema Nacional de Cadastro Rural, as grandes propriedades privadas saltaram de 238 milhões para 244 milhões de hectares.

A discussão sobre a concentração de terras no país pôs em polos opostos os novos ministros do Desenvolvimento Agrário, Patrus Ananias, e da Agricultura, Kátia Abreu. Em seu discurso de posse, Patrus disse que é preciso "derrubar as cercas dos latifúndios", que, na opinião de Kátia, sequer existem mais.

Há 130 mil grandes imóveis rurais, que concentram 47,23% de toda a área cadastrada no Incra. Para se ter uma ideia do que esse número representa, os 3,75 milhões de minifúndios (propriedades mínimas de terra) equivalem, somados, a quase um quinto disso: 10,2% da área total registrada. No governo Lula, de 2003 a 2010, o aumento das grandes propriedades, públicas e privadas, foi ainda maior do que na gestão de Dilma. Elas saltaram de 214,8 milhões, em 2003, para 318 milhões de hectares em 2010: aumento de 114 milhões de hectares.

175 milhões de hectares improdutivos

Dados do ainda inédito Atlas da Terra Brasil 2015, feito pelo CNPq/USP, mostram que 175,9 milhões de hectares são improdutivos no Brasil. O conceito de produtividade da terra no país, explica o pesquisador Ariovaldo Umbelino de Oliveira, responsável pelo atlas, atende a critérios que, se atualizados, aumentariam ainda mais a faixa considerada improdutiva.

O índice de produtividade das propriedades agrícolas só foi calculado uma vez, em 1980. Desde então, foram realizados quatro censos agropecuários, mas esse índice não foi atualizado. Assim, a medição de produtividade é feita com dados defasados. No caso da soja, ainda se considera produtiva a propriedade em que são obtidos 1.200 quilos de soja por hectare. Caso houvesse uma atualização, levando-se em conta a evolução dos meios e das técnicas de produção, o índice de produtividade iria para 3.500 quilos por hectare. Esse problema ocorre ainda no cálculo de produtividade de outras culturas.

Em nota, o Incra informou que não faz a análise de produtividade dos imóveis rurais, a não ser que eles estejam em processo de aquisição de terras para reforma agrária.

Pelo levantamento citado por Umbelino, um dos principais pesquisadores da questão agrária, em 2010, das grandes propriedades privadas e públicas (130,5 mil), 66 mil imóveis foram considerados improdutivos, não atendendo aos critérios de função social da terra. Eles somam 175,9 milhões dos 318 milhões de hectares.

- As grandes propriedades crescem, e a improdutividade é grande, o que significa que o simples fato de ter terra no Brasil, ainda que improdutiva, enriquece seus proprietários. É um problema grave da questão fundiária - diz ele.

Para o pesquisador da USP, o crescimento de 2,5% em quatro anos das grandes propriedades privadas do país mostra que a concentração de terra não tem retrocedido. O coeficiente de Gini, que mede a desigualdade, aponta essa tendência. Ele deve variar de 1 a 0, sendo que, quanto mais próximo de zero, menor a desigualdade. De 1967 até 2010, última data em que foi calculado, porém, o coeficiente de Gini sobre concentração fundiária, com base em dados do Incra, apenas variou de 0,836 para 0,820.

Além do crescimento das grandes propriedades, aumentou o registro dos demais tipos de imóveis rurais públicos e privados entre 2010 e 2014; mas, na divisão da área total, diz Umbelino, o crescimento percentual maior é o das grandes propriedades públicas e privadas. Os minifúndios caíram de 8,2% para 7,8% da área total de imóveis; as pequenas propriedades, de 15,6% para 14,7%; e as médias, de 20% para 17,9%. As grandes propriedades privadas e públicas foram de 56,1% para 59,6% da área total.

Para CNA, índios têm mais terra per capita

O presidente da Associação Brasileira para a Reforma Agrária (Abra), Gerson Teixeira, também critica o crescimento das grandes propriedades. Para ele, são evidências de que aumentou a concentração de terra. Ele atribui esse crescimento também ao fôlego do agronegócio e do ciclo de valorização das commodities.

A Confederação Nacional de Agricultura (CNA), que foi presidida por Kátia, usa o IBGE para comparar a quantidade de terra em mãos de índios e fazendeiros. Segundo a CNA, os índios têm 135 hectares per capita, ocupando 13% do país. Já os 10 milhões produtores rurais registram uma ocupação per capita de 23,4 hectares.

A oposição entre indígenas e fazendeiros é um dos mais críticos problemas fundiários, e as declarações de Kátia irritaram o bispo do Xingu e presidente do Conselho Missionário Indigenista (Cimi) da Igreja Católica, Dom Erwin Kräutler. Ele chamou a ministra de "rainha da motosserra" e disse que ela "passa por ridícula ao negar o direito dos povos, frisando que "o Brasil inteiro era deles".

O GLOBO procurou o presidente da CNA, João Martins da Silva Júnior, mas ele estava no interior da Bahia e não foi localizado. Os técnicos em questão fundiária da CNA estão de férias.

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Parlamentares petistas ligados ao MST contestam declaração de Kátia  

 

BRASÍLIA

Deputados do PT ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) reagiram à afirmação da ministra da Agricultura, Kátia Abreu, de que não há mais latifúndios no país. E evidenciaram ainda mais as divergências entre as defesas feitas pela ministra e bandeiras petistas tradicionais, Antigos sem-terra e hoje assentados pela reforma agrária, os deputados Valmir Assunção (BA) e Marcon (RS) foram dos quadros do MST. Assunção anunciou que buscará no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a relação dos latifúndios improdutivos para entregá-la a Kátia.

- É ignorância política a ministra dizer que não há mais latifúndio. E a Constituição é clara e diz que terra improdutiva deve ir para reforma agrária, cumprir sua função social, como reforçou o Patrus Ananias (ministro do Desenvolvimento Agrário) - disse Assunção.

Procurada, a ministra não respondeu às ligações do GLOBO. Os parlamentares do PT ligados aos movimentos sociais apoiam com entusiasmo a indicação de Patrus para o ministério e apostam que ele fará oposição às ideias de Kátia.

- O Patrus é um dos maiores nomes da esquerda brasileira e também advogado. O discurso dele agradou muito a nós. Ele citou cinco vezes a necessidade de a terra cumprir sua função social - disse Assunção, ex-acampado, que foi assentado em 1987 no assentamento Riacho das Ostras, em Prado (BA), e já foi da direção do MST.

Vivendo no assentamento Capela, em Nova Santa Rita (RS), o deputado Marcon tem 20 hectares de terra, onde planta arroz orgânico e outros produtos.

- São muitos os latifúndios no Brasil afora. E que não cumprem função social. Essa declaração da ministra não tem cabimento - disse Marcon.

Também ligado ao MST e filho de agricultor familiar, o deputado Padre João (PT-MG) afirmou que os dados mostram com clareza que existe latifúndio no Brasil.

- É preciso otimizar a terra, sem falar da precariedade em que vive o trabalhador rural. No campo, avançamos na tecnologia, mas o índice de produtividade ainda está caduco. Tem que se exigir melhor produtividade por hectare.

O Palácio do Planalto minimizou o embate que Patrus e Kátia travaram ao tomarem posse. Para um interlocutor da presidente Dilma Rousseff, o governo escalou representantes dos dois lados do campo (agricultura familiar e agronegócio), e, por isso, o debate entre eles será permanente. As divergências entre os dois eram "previsíveis e esperadas".

- As duas dimensões do campo estão representadas dentro do governo, e isso é muito bom. Eles vão divergir em alguns pontos e concordar em outros. Essa divergência inicial está totalmente dentro do previsível e do esperado - disse o auxiliar.