A sede dos parlamentares por salários turbinados e benesses inclui itens como auxílios, cotão para despesas do mandato, gastos ilimitados com telefone, passagens aéreas e outras regalias. O problema é que, com o objetivo de multiplicar o contra-cheque, e burlar o teto constitucional, os deputados federais e senadores legalizaram, informalmente, uma prática que não encontra respaldo na legislação: a caixinha de gabinete. Nos últimos 10 anos, foram pelo menos oito casos de parlamentares que tomaram para si parte dos salários dos funcionários. Todos contaram com a vista grossa das corregedorias das duas Casas, que, por costume, não adotam nenhuma punição para a prática. A acusação mais recente se refere ao deputado federal João Campos (PSDB-GO) e está em investigação pela Procuradoria-Geral da República.

O presidente da bancada evangélica da Câmara é acusado por uma ex-funcionária de ficar com parte do salário dela entre 2004 e 2008, quando ocupou cargo de natureza especial (CNE) na Casa. A acusação só foi feita no fim do ano passado, após a Receita Federal cobrar impostos não pagos da assessora. Somente neste ano, o Ministério Público começou a investigar o caso com mais profundidade e decretou sigilo sobre a apuração.

Não será a primeira nem a última acusação de retenção de remuneração de servidores, geralmente comissionados, por políticos. Porém, são poucos os casos de punição, seja por falta de provas, seja pela demora das autoridades (veja quadro). “Quem está no cargo comissionado busca manter o posto, aí se submete a condições esdrúxulas. É algo condenável”, resume o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello. A denúncia por escrito contra Campos foi apresentada em 7 de outubro, dois dias após ele ser reeeleito para mais um mandato. A servidora da Câmara Eliene Audrey Arantes Corrêa disse que o parlamentar a obrigava a repassar parte de seus rendimentos. Análise preliminar da PGR avaliou que o deputado, em tese, praticou “crime de abuso de autoridade e improbidade administrativa”.

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, solicitou informações ao próprio Campos, que pediu prazo maior para se explicar. O gabinete do deputado disse ao Correio que ele está surpreso com a acusação.

Imposto

A reportagem apurou que Eliene Audrey não foi à Justiça pedir indenização pelo salário retido, mas resolveu fazer a denúncia depois de ser alvo de duas execuções da Receita Federal. O fisco cobra, segundo fontes ouvidas pelo jornal, valores de imposto de renda que ela não recolheu, com base no salário cheio que recebia da Câmara, que variou de R$ 2,5 mil a R$ 8 mil aproximadamente. A servidora, porém, alega que recebia cerca de R$ 500 a R$ 800. O resto ficaria com Campos.

A Justiça Federal determinou que fossem confiscados cerca de R$ 50 mil das contas de Eliene para o pagamento de impostos atrasados. Sem encontrar os valores, foram bloqueados menos de R$ 2 mil. Eliene tentou liberar o dinheiro duas vezes em 2013, mas os pedidos foram negados pela juíza Isaura Cristina Leite, da 11ª Vara Federal de Brasília. Procurada para detalhar as acusações, a funcionária preferiu não conceder entrevista ao jornal.

Casos como esse se multiplicam no parlamento e chegam a ser institucionalizados pelos partidos. Há dois anos, um inquérito civil contra vários partidos corre na Procuradoria da República no Distrito Federal e um criminal tramita na PGR. Eles apuram acusações de que, de forma organizada, as legendas e seus parlamentares passaram a exigir uma ‘caixinha’ de todos os funcionários em cargos comissionados, mesmo dos não filiados ao partido. Isso porque os estatutos exigem a contribuição dos filiados, mas a filiação dos servidores não é obrigatória. Em alguns casos, a cobrança se dava com boleto. Houve até tentativas de se fazer débito automático da conta-corrente do servidor para a do diretório regional.

“O cara sabe”

Ao mesmo tempo, alguns políticos chegaram a desdenhar desse tipo de acusação. O então presidente da Câmara Marco Maia (PT-RS) afirmou em 2011 que “depende da combinação que o partido” faz a obrigação de contribuir ou não para os funcionários dos gabinetes. “Quando ele ajusta com o cara, o cara sabe que tem que contribuir. Depois, o cara não quer contribuir. Bom, aí…”

Ele ainda desafiou à época qualquer denúncia na Câmara sobre o assunto. “Sabe por que nenhum partido fez isso até agora? Nenhuma representação? Porque todos têm a fonte de contribuição, inclusive o PSol”. O PSol criticava a medida e ameaçava fazer uma representação contra a prática. O líder do partido, Chico Alencar (RJ), negou a acusação de Maia, mas também nada denunciou.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou ato de improbidade administrativa forçar os servidores do gabinete a pagar contribuições ao partido ou ao político. Julgamento da 2ª Turma de maio de 2010 da Corte seguiu o relatório do ministro Castro Meira sobre “a entrega compulsória e o desconto em folha de pagamento de parte dos rendimentos auferidos pelos assessores formais dos recorrentes — destinados à manutenção de “caixinha” para gastos de campanha e de despesas dos respectivos gabinetes, bem assim para a contratação de assessores particulares”. Para os ministros, essas práticas “violam, expressamente, os princípios administrativos da moralidade, finalidade, legalidade e do interesse público”.

Dízimo proibido

A Justiça chegou a ser radical contra a cobrança de parte dos salários dos servidores feita por partidos políticos. Se a caixinha já foi considerada improbidade pelo STJ, o TSE foi ainda mais longe. Em 2005, considerou que até o dízimo partidário — cobrado apenas de filiados — deveria ser proibido a funcionários públicos. O entendimento da Justiça Eleitoral foi de que a lei veda às legendas o recebimento de dinheiro público, ainda que indiretamente, a não ser do fundo partidário. “Em vez de os recursos públicos visarem, em si, à prestação dos serviços, dar-se-ia o financiamento dos partidos”, analisou o ministro Marco Aurélio Mello, no relatório da resolução do tribunal. A decisão, no entanto, não inibiu a prática. “O Brasil acaba sendo o país do faz de conta”, resume Mello. O procurador da República João Gilberto Gonçalves Filho entrou na Justiça para impedir as 27 siglas da época de receber dinheiro de servidores. O tema está na primeira instância, em São Paulo, e não chegou a ir ao plenário.