O vídeo do piloto jordaniano sendo queimado vivo por militantes do Estado Islâmico (EI) e, mais recentemente, a decapitação de 21 cristãos coptas egípcios na Líbia chocaram o mundo, inclusive o islâmico. O horror foi tamanho que fez com que as imagens parecessem montagens produzidas por homens encapuzados parecendo habitar um mundo, física e imaginariamente, remoto do Ocidente.

O Ocidente não se reconhece no EI e nem o contrário. Como colocado pelo presidente Obama, o EI é o “puro mal". A organização, que pretende reeditar a ideia de um califado em pleno século 21, é tida como o avesso do Ocidente e parece fazer de tudo para conferir crédito à declaração de Obama, uma vez que não mede esforços para produzir o terror e chacoalhar as audiências ocidentais. E o faz evocando o resgate de um Islã não contaminado pelos valores ocidentais.

O sonho de reviver um passado mítico por parte do EI perde de vista, contudo, que o grupo se vale de modernas tecnologias sob a forma de armas sofisticadas de fabricação americana, e da internet, utilizada para conferir publicidade aos seus atos e tentar arregimentar adeptos para suas causas antiocidentais.

Esse jogo de contrários absolutos, do bem contra o mal, da civilização contra a barbárie, tem uma longa trajetória no pensamento ocidental. No clássico “Orientalismo”, Edward Said ilumina o processo de construção do oriental por parte daqueles que se representam como ocidentais. O EI passa a ocupar esse lugar historicamente imputado aos orientais, mas também aos canibais e piratas: o da irracionalidade e da desumanidade. O Ocidente, por contraposição, continua se produzindo como o espaço do progresso, da razão e da humanidade, pronto para salvar, se preciso coercitivamente, os não ocidentais de seus costumes bárbaros.

Todavia, a busca por uma identidade pura só se faz possível por meio do sepultamento dos complexos entrelaçamentos da História, que resultaram numa hibridização de culturas, e que mesclaram, de modo irreversível, os destinos da humanidade. Esse jogo de purificação, contudo, não é privilégio do EI, já que o nosso próprio Estado nacional se construiu a partir do ideal de um Estado homogêneo, pouco afeito ao reconhecimento da diferença no âmbito das suas fronteiras, vide o caso contemporâneo da França, onde as mulheres são proibidas de usar o véu nos seus locais de trabalho e estudo.

A representação histórica do Ocidente sobre os povos não ocidentais como um todo bárbaro vem tornando o Ocidente prisioneiro da sua própria retórica. Afinal, paira sempre a dúvida se, de fato, ele aprendeu a diferenciar os fiéis islâmicos da sua minoria radicalizada. Por outro lado, ao banalizar a barbárie entre os não ocidentais, o Ocidente se vê diante de um impasse: como qualificar o EI, a não ser por superlativos, como o mais bárbaro entre os bárbaros?