Após 4 anos de crise, diplomatas criticam falta de ação contra Assad e radicais

"Sua hora está chegando, doutor." Foi com essa frase escrita no muro de um pátio de escola, em março de 2011, que uma das piores guerras deste começo de século teve início. A frase era um recado ao presidente sírio, Bashar Assad. Os supostos autores da pichação - crianças da cidade de Deraa - foram presos. A resposta veio em forma de uma marcha silenciosa, no dia 15 de março do mesmo ano, também reprimida.

 

 

Hoje, quatro anos depois, a Síria caminha para sua destruição diante de uma comunidade internacional dividida e de uma ONU impotente. Se Assad conseguiu se manter no poder, o país se transformou no cenário da maior crise humana das últimas décadas, colocou o Oriente Médio numa encruzilhada e transformou o que era um conflito interno em palco de uma guerra internacional.

 

Nesse cenário, a avaliação é que não existem vencedores e o único beneficiário foi o Estado Islâmico, que transformou a Síria em sua base, modificou o cálculo de potências em todo o mundo e transformou-se na maior ameaça à segurança internacional. A nova realidade fez com que, em 2014, o conflito vivesse seu momento mais dramático, com mais de 76 mil mortes.

 

Em um primeiro momento, a permanência de Assad no poder era o centro dos debates, seguindo a lógica dos levantes registrados na Primavera Árabe. A então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, chegou a se reunir com a suposta oposição moderada, fez promessas de ajuda e passou a pedir publicamente que Assad deixasse a presidência.

 

No entanto, em um país onde uma ditadura abafou diferenças religiosas e qualquer oposição por 40 anos, a perspectiva de uma queda do governo levou diferentes grupos a uma disputa interna pelo poder. A oposição também se dividiu entre aqueles que se recusavam a ser armados por Washington e os que alertavam que apenas uma guerra tiraria Assad do poder.

 

Ao mesmo tempo, a comunidade internacional dividiu-se e escancarou os limites da ONU em agir para cumprir seu mandato de garantir a paz no mundo. Rússia e Irã se recusaram a abandonar seu aliado em Damasco. O Brasil e outros países, usando o exemplo catastrófico da Líbia pós-Kadafi, chegaram a se abster em diversas resoluções e até enviaram representantes para tentar manter um diálogo com Assad.

 

Europa e EUA passaram a financiar a oposição. Nenhum dos lados prevaleceu e nenhuma das potências fez o suficiente para convencer seus aliados no conflito a mudar de posição.

 

Apesar de dezenas de provas de crimes contra a humanidade, Rússia e China rejeitaram aceitar uma resolução que permitisse levar os autores dos crimes ao Tribunal Penal Internacional. Do outro lado, governos como o do Catar e da Arábia Saudita financiaram grupos armados, apesar da recomendação da ONU para que não se injetasse mais armas na Síria.

 

Hoje, nas Nações Unidas, o sentimento é de profundo constrangimento com a constatação que esse fracasso está sendo um duro golpe contra a entidade. "A credibilidade da comunidade internacional está em jogo", alertaram seis dos principais chefes de organismos da ONU em uma carta aberta publicada na sexta-feira. Entre os signatários estavam Valerie Amor, Margaret Chan e Antonio Guterres.

 

Até o secretário-geral, Ban Ki-moon, perdeu a paciência. "As potências internacionais são incapazes de tomar uma ação coletiva", disse. "O impasse no Conselho de Segurança, diante de vetos e ameaças, tornou-as impotentes para parar esse cenário de banho de sangue", declarou Zeid al-Hussein, o alto-comissário da ONU para Direitos Humanos.

 

A realidade é que todos os esforços diplomáticos fracassaram e, em quatro anos, a ONU já está em seu terceiro mediador para o conflito. Os dois primeiros - entre eles Kofi Annan - renunciaram ao cargo diante da recusa das potências em colaborar.

 

O Estado teve acesso aos grupos que trabalham diariamente com a guerra na Síria e constatou o desânimo dos funcionários. "A crise é a paródia do colapso político da ONU", declarou um deles, sob condição de anonimato e enquanto analisava vídeos postados na internet com novos massacres.

 

"Há 3 anos meu trabalho é assistir a um horror a cada dia e relatar às instancias políticas para que tomem uma iniciativa. Mas nada é feito e não há como não se sentir frustrado diante da impotência", disse.

 

"Os grupos armados estão agindo em total impunidade e temo que a guerra na Síria se transforme no capítulo mais sangrento da história da ONU", declarou Jan Egeland, ex-coordenador de ações humanitárias da ONU e hoje presidente do Conselho de Refugiados da Noruega.

 

Radicalização. O resultado, segundo a própria ONU, foi a abertura de um espaço inédito para o surgimento do que hoje governos apontam como a maior ameaça à segurança internacional: o Estado Islâmico.

 

Documentos obtidos pela reportagem revelam que a ONU tinha feito, em 2013, um alerta sobre essa situação. Um memorando foi enviado aos membros do Conselho de Segurança que atestava que jovens combatentes da oposição moderada síria estavam migrando para unidades mais ricas, mais bem armadas e mais radicais.

 

"O insucesso dos grupos rebeldes estimulou muitos grupos e indivíduos a aderirem às organizações terroristas, com muito recursos, armamento pesado e maiores sucessos militares", explicou ao Estado o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, presidente da Comissão de Inquérito da ONU para os Crimes na Síria. "Por outro lado, é importante considerar que os grupos extremistas não caíram do céu. Eles foram estimulados e mesmo financiados, por exemplo, por indivíduos de alguns Estados da região."

 

O EI começou como uma filial da Al-Qaeda em 2004. Ganhando autonomia, os jihadistas rapidamente se desligaram do grupo criado por Osama bin Laden. Usando recursos do petróleo, da venda de bens culturais e graças à ajuda estrangeira, o EI expandiu-se rapidamente e convocou para a jihad jovens de mais de 80 países, que passaram a engrossar suas filas.

 

O grupo passou a conquistar cidades no Iraque e ganhou filiais na Líbia e em vários pontos da África. Em julho de 2014, o EI declarou seu califado e colocou governos de toda a região em estado de alerta.

 

Segundo Pinheiro, o Estado Islâmico hoje "controla um terço do território, a maioria deserto, algumas cidades e campos petrolíferos, com uma população de 20% da Síria". Já o que restou do Exército Livre da Síria não conta mais que a área rural do sul do país.

 

Bashar Assad. A nova realidade obrigou potências e a própria ONU a repensar estratégias. A primeira delas se refere ao futuro do presidente Bashar Assad, que governa apenas 60% da Síria. Em Washington, o governo americano deixou de pedir que ele deixe o poder, ainda que não reconheça publicamente que Assad tem de ser parte da solução. Mas, na ONU, negociadores confirmam à reportagem do Estado que foram autorizados a dialogar com Damasco, admitindo que o presidente não cairá.

 

O atual mediador da ONU para a Síria, Staffan de Mistura, chegou a declarar que Assad deveria ser "parte da solução". Seu gesto foi uma concessão para conseguir negociar um cessar-fogo parcial em Alepo por seis semanas.

 

Entre diplomatas sírios na ONU, a percepção é a de que o Ocidente mudou seu tom com Assad, pois "precisa" de Damasco para derrotar o EI. Desde o final de 2014, os bombardeios de uma coalizão internacional contra o EI passaram a ocorrer no território sírio, como queriam a oposição moderada desde o início. No entanto, com o consentimento de Assad e sem jamais tocá-lo. Para entidades como a Human Rights Watch, o drama dessa história é que Assad "não deixou de ser um criminoso de guerra".