"A corrupção é senhora idosa que age em toda parte." A frase é verdadeira, mas incompleta. A provecta ladrona não age sozinha. Ela foi superada por trêfegas meninas que renovam as técnicas de assalto. Se a avozinha subtraía milhões, as netas embolsam bilhões. Ocorre com a rapinagem algo análogo à inflação. E. Canetti, em Massa e Poder (Inflação e massa), mostra a ruína ética trazida pela moeda apodrecida. As peças metálicas, nas mãos dos trabalhadores, davam um sentimento dignificador. Se o corpo é gratificado, a alma sente segurança. Na confiabilidade da moeda reside a sua marca principal.

 

 

As notas impressas diminuem o peso do dinheiro. A inflação humilha quem vive de salário. Com ela "nada mais é seguro, nada permanece no mesmo local durante uma hora; mas em virtude da inflação o homem diminui. Ele mesmo, ou o que ele foi, é nada; o milhão, que ele sempre desejou ter, também é nada. Todos o possuem. Mas cada um é nada". Milhões não compram pão, empregos somem, o ressentimento exaspera. Conclusão de Canetti: os nazistas agiram contra os judeus como num processo inflacionário. "Primeiro eles (os judeus) foram atacados como maus e perigosos, inimigos; depois foram cada vez mais desvalorizados; como já não se tinha judeus em número suficiente, eles foram coletados nos países vencidos; e, no final, eles eram vistos literalmente como insetos que podiam ser exterminados aos milhões." Os fanáticos de Goebbels "dificilmente poderiam ter chegado tão longe, se poucos anos antes não tivessem passado por uma inflação na qual o marco valia um bilionésimo do valor original. E foi esta inflação como fenômeno de massa que eles descarregaram sobre os judeus".

 

A nossa política está em via de unir dois sistemas inflacionários. O primeiro é a degradação da moeda. Quem tem mais de 30 anos recorda os anos Sarney e Collor. O Brasil namorou o fascismo, persistente em suas entranhas históricas. Recordo os "fiscais do Sarney" que invadiam supermercados com bandeiras do País, prendiam gerentes, ameaçavam funcionários. Tais linchamentos surgiram com o descontrole monetário. Agora vem a inflação do mercado corrupto. Muitos líderes políticos estão unidos aos assaltos, antes cifrados em milhões. Atingimos o patamar dos bilhões. Humilhação e desespero, trazidos pela crise da moeda, surgem em plano profundo. O ressentimento contra as instituições representativas e democráticas, a desvalorização experimentada pela cidadania ante os corruptos, conduz a massa aos primitivos desejos de um ditador que salve a Pátria, um benefactor.

 

Milhões de pessoas, no golpe de 1964, apoiaram o veto à subversão e à corrupção. Os pretensos subversivos foram torturados, mortos, exilados, cassados. Mas retornaram à sociedade. Os corruptos continuam nas instituições de Estado porque garantem o acesso dos governos às regiões dominadas. Oligarcas que garantiram os donos do poder continuam no regime civil. Eles dominam a Nova República com José Sarney, visto ao lado da presidente Rousseff quando ela recordava aos manifestantes do 15 de Março sua luta contra a ditadura. Só faltou à chefe de Estado dirigir o dedo indicador rumo ao fidalgo (Lula o considera um "homem incomum") que, na cadeira próxima, tudo ouvia sorrindo. Ele presidiu a Arena, "o maior partido do Ocidente", segundo Francelino Pereira.

 

Mas não somos campeões mundiais de corrupção. Já na França do século 19, diz um autor hoje pouco lido, a pilhagem do Estado se dava em grande e pequena escala. "As relações entre a Câmara dos Deputados e o governo eram multiplicadas sob os tratos entre diferentes administrações e diferentes empresários. (…) A Câmara coloca nas costas do Estado os gastos maiores e garante às aristocracias especuladoras e financeiras o maná de ouro. Todos recordam os escândalos na Câmara dos Deputados quando se descobriu, por acaso, que todos os membros da maioria, inclusive uma parte dos ministros, eram acionistas das empresas, a quem eles conferiam a seguir, como legisladores, a execução das estradas de ferro, tudo por conta do Estado". De te fabula narratur… Mas ainda não atingimos o ponto descrito por Marx em As Lutas de Classes na França.

 

A reforma política, uma quimera, tem como pressupostos a lei do lobby e a democratização dos partidos. Sem a primeira parlamentares encobrem, com a autoridade do cargo, atos em defesa de anônimos interesses econômicos, sociais, culturais, religiosos. E sem democracia interna nos partidos os corruptos continuam intocados. Na atual forma partidária, dirigentes ficam nos cargos por décadas. Dominam alianças, candidaturas e, last but not least, os cofres. Roberto Macedo escreveu neste espaço, e muito bem, sobre as emendas parlamentares que sugam os cofres públicos. S. Exas. aumentaram de modo pantagruélico o Fundo Partidário. Sem renovação dos dirigentes e controle dos partidos pelos afiliados, sem eleições primárias, a dinheirama oficial reforça a ditadura partidária dos oligarcas.

 

Quais são as diferenças entre tiranos e bons governantes? A pergunta é de Jean Bodin em Os Seis Livros da República. "Um busca manter os governados em paz e união; outro os divide para os arruinar e engordar os confiscos. Um aprecia ser visto às vezes e ouvido pelos dirigidos; outro deles se esconde, como inimigos. Um prefere o amor dos governados; outro, o medo. Um só teme pelos liderados; outro tem medo deles. Um pede impostos na quantia mínima e para a necessidade pública; outro chupa o sangue, rói os ossos, suga o tutano dos governados para os enfraquecer. Um procura as melhores pessoas de bem para empregar nos cargos públicos; outro só emprega no governo os piores ladrões, para deles se servir como esponjas."

 

Pelos critérios clássicos da ética e do direito, não vivemos em democracia plena, mas no tirânico regime em que o poder é benéfico para os que legislam em causa própria. Falei das inflações monetárias e da corrupção. Convenhamos, temos no Brasil a deflação da vergonha na cara.

 

*Roberto Romano é professor da Unicamp e autor de 'Razão de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)