Título: Duas histórias para o Brasil
Autor: Castelar, Armando
Fonte: Correio Braziliense, 27/07/2011, Opinião, p. 15

Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

O Brasil vive um período de otimismo, marcado por um salto no consumo da "nova classe média", um grande interesse dos estrangeiros no país, e uma nova inserção global, da participação no G20 à realização de grandes eventos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. O país tornou-se referência de boas práticas, da regulação financeira às políticas de combate à pobreza. Em vários indicadores, das contas fiscais ao desemprego, nos comparamos favoravelmente aos EUA, à Europa e ao Japão.

Para muitos, há um novo padrão de desenvolvimento, que em alguns anos colocará o país no rol das economias desenvolvidas. Porém, para outros, essa euforia reflete primordialmente, ainda que não apenas, os efeitos do cenário externo, com preços de commodities nas alturas e amplo acesso ao financiamento externo; para estes, ainda que a situação atual seja boa, essa dinâmica econômica é insustentável a médio prazo e há um risco razoável de que a festa acabe em nova crise.

Qual dessas duas histórias melhor descreve o Brasil de hoje? A leitura otimista baseia-se, acima de tudo, nos bons números que o país ostenta há alguns anos, como as transformações no consumo, no mercado de trabalho, e no acesso ao crédito e à moradia. O consumo vem crescendo rápido, inclusive acima do PIB, o que não impediu que os juros caíssem, as contas públicas permanecessem equilibradas e o déficit externo sob controle. Em especial, as duas áreas usuais de vulnerabilidade, as contas fiscais e externas, estão sólidas, com a dívida pública em queda gradual e com bom perfil e as reservas internacionais em nível recorde.

Várias reformas nos últimos 20 anos contribuíram para dar solidez à economia brasileira: a estabilização de preços, com o Plano Real; as reformas liberais dos anos 1990, incluindo a abertura comercial, a privatização e o fim de monopólios e outras regulações públicas; o saneamento do sistema financeiro, com o Proer, o Proes e o Proef; várias reformas institucionais, como a criação do crédito consignado; o estabelecimento e cumprimento de metas fiscais a partir de 1997; e a drástica queda do risco político pela manutenção e até aprofundamento das políticas de FHC por Lula Somam-se a isso progressos na educação e na saúde, em parte responsáveis pela melhora na distribuição da renda.

Por seu lado, há varias dimensões na preocupação com a inconsistência da dinâmica econômica do país. A primeira diz respeito à demanda doméstica crescer bem acima da produção. Nos últimos seis anos, o consumo das famílias subiu 5,6% ao ano e o investimento 9%, contra uma expansão do PIB de 4,3% ao ano. A contrapartida foi uma forte alta das importações líquidas, que, com a apreciação do câmbio, impediu uma escalada da inflação. O surpreendente, porém, foi que o déficit externo, apesar de aumentar bem, não saiu do controle. A razão para isso foi a forte alta no preço das commodities. Por quanto tempo esses preços continuarão subindo e o câmbio se apreciando nesse ritmo?

Outro desequilíbrio dinâmico diz respeito às contas públicas: ainda que o superávit primário tenha se mantido, grosso modo, próximo às metas, isso se deu em um contexto em que o gasto público corrente e a arrecadação tributária cresceram em ritmo chinês. A política econômica atual tem mecanismos que impõem a alta continua dos gastos, como a regra de aumento do salário mínimo mas não é claro até quanto será possível elevar a carga tributária sem comprometer inteiramente o crescimento.

Em outras circunstancias, se poderia pensar em simplesmente conter o crescimento a partir do momento em que os preços das commodities parassem de subir ou não fosse mais factível aumentar a carga tributária. Mas isso vai ficando cada vez mais complicado, pela dinâmica que se estabeleceu entre o aumento da demanda doméstica, a queda do desemprego e o aumento do crédito, este retroalimentando a expansão do consumo. Conforme esse processo avança, aumenta o risco de que uma súbita parada na atividade desencadeie uma forte alta na inadimplência e comprometa a saúde dos bancos.

Como mostrou a crise financeira internacional, as finanças públicas parecem em ordem até que o governo tem de socorrer bancos com problemas. Como mostrou a nossa experiência nos anos 1980, o mesmo ocorre quando empresas privadas com grandes passivos em dólar têm de enfrentar uma súbita desvalorização cambial.

A intenção de quem aponta essas inconsistências dinâmicas não é ser catastrofista, mas alertar para a necessidade de corrigi-las. Se isso será feito, se Vera depois.