Título: Concorrência é somente uma variável
Autor: Monteiro, Fábio ; Ribas, Sílvio
Fonte: Correio Braziliense, 31/07/2011, Economia, p. 18

ENTREVISTA - OLAVO CHINAGLIA

Conselheiro do Cade defende que a competição não é um valor intocável. Para ele, a formação de grandes grupos, como a Brasil Foods, beneficia o mercado

O aumento da renda do brasileiro tornou o mercado nacional ainda mais atraente nos últimos anos, acelerando os processos de concentração. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) está atento a esses movimentos, como as recentes tentativas de fusão entre os varejistas Pão de Açúcar e Carrefour e as aéreas Gol e Webjet. Para Olavo Chinaglia, advogado e conselheiro da autarquia ligada ao Ministério da Justiça, além das leis e dos controles públicos, o comportamento do consumidor também ajuda a definir o nível de competição nos negócios locais. "O Brasil é um lugar em que uma pessoa é capaz de se endividar para ter uma bolsa de marca", ilustra.

Nesta entrevista ao Correio, ele defende que o país pode e deve aprender com o sistema antitruste norte-americano, que tem como maiores aliados os próprios consumidores e a Justiça. "A cobrança do cidadão é um fator em progresso no Brasil", sublinha. Chinaglia, um dos responsáveis pela solução final para o caso Brasil Foods (BRF) ¿ união entre Sadia e Perdigão ¿, esclarece que há momentos em que o Estado pode sacrificar a concorrência em nome de outras prioridades, como o ganho de escala, a resistência ao domínio estrangeiro e a universalização dos serviços. "A concentração é só um dos aspectos a serem avaliados pela defesa da concorrência. O importante é ter regras e instrumentos para coibir abusos", sustenta.

O crescimento do número de grandes fusões no Brasil nos últimos anos preocupa o Cade? Sem dúvida. Em mercados como aviação civil, cimento, serviços médico-hospitalares e petroquímico, percebemos que não há só concentração horizontal, com união de empresas no mesmo segmento, mas também integração vertical de competidores para atuar em diversas etapas da cadeia de produção. Nesses casos, nosso cuidado é redobrado. Mas também precisamos entender que a concentração ocorre no mundo todo e só enxergaremos com clareza os motivos desses movimentos daqui a anos. Grandes corporações não são necessariamente ruins. Se houver mecanismos de controle eficientes, em benefício da sociedade, a solução pode ser a melhor possível.

Toda concentração de mercado é vista com desconfiança pelo Cade? A concentração é só uma das variáveis a serem consideradas. Há outras circunstâncias que podem eventualmente atenuar a chance de dano à coletividade. Um mercado concentrado nas mãos de poucas empresas pode até favorecer o consumidor, caso exista grande rivalidade. É o melhor dos mundos quando empresas com condições de investir, inovar e oferecer diversidade sabem que seus concorrentes de igual porte estão prontos para abocanhar fatias do mercado. Setor concentrado não significa necessariamente exercício coordenado de poder de mercado.

Então a preservação da concorrência não é vista pelo conselho como valor intocável? As agências de concorrência não existem para proteger interesses de um concorrente em particular, mas da competição como instrumento para o desenvolvimento e o bem-estar social. Apesar disso, a concorrência não é o único valor a ser perseguido. Pode ter outros interesses em determinados momentos, igualmente legítimos, que precisam ser defendidos. Em dado momento, houve a percepção de que havia necessidade de privatizar certos serviços, porque o Estado não tinha capacidade de investir. Para que essa transição pudesse ser bem sucedida e que outros objetivos fossem alcançados, o governo optou por sacrificar a concorrência num primeiro momento, para dar tempo para as empresas se capitalizarem e realizarem investimentos. Só depois a concorrência foi restabelecida.

O objetivo da Ambev era mesmo reagir à globalização e levar a cerveja brasileira ao mundo? A ideia de criar "campeões nacionais" para disputar o mercado internacional é debatida em várias partes do mundo. É até compreensível o argumento de que empresa com maior escala, escopo e capacidade de investimento tem condições para disputar qualquer mercado. Mas tem o outro lado. Uma empresa que não sofre competição doméstica intensa, talvez sequer tenha apetite para se internacionalizar, pois já tem sua rentabilidade assegurada no mercado local. Foi o que ocorreu no Brasil. Quando a economia foi aberta, muitas companhias descobriram que não tinham condições de competir fora e de barrar a entrada de estrangeiros. A concentração nessa hipótese é movimento de defesa, para fazer frente à competição externa.

A atuação das agências de concorrência depende do perfil de cada país? Sem dúvida. O que nos diferencia dos Estados Unidos é que lá existe uma cultura consolidada de concorrência. O consumidor norte-americano está acostumado a exigir de seus fornecedores que atuem no nível máximo de competição possível. A isso se soma uma diferença institucional importante: as decisões são tomadas pelo Judiciário. É uma vantagem em relação a nosso sistema, passível de demoradas revisões por outras instâncias.

O Brasil tem apetite de consumo semelhante ao dos EUA. Por que o brasileiro não é exigente? Uma coisa é o que o brasileiro quer ter à sua disposição. Outra coisa é quanto ele está disposto a pagar. Nossa sociedade se formou em cima de uma elevadíssima concentração econômica, da época do Império. E isso se reflete até hoje, nos comportamentos de consumo. Aqui, a capacidade de pagar caro por um produto é vista como status. O Brasil é um lugar em que uma pessoa é capaz de se endividar para ter uma bolsa de marca e ignorar outras necessidades mais urgentes. A demanda reprimida por décadas pode ter contribuído para a angústia do consumidor em ter acesso a bens acima de seu poder de compra. Mas se compararmos a situação atual com a época em que o Cade foi transformado em autarquia, é visível a evolução. Cidadãos têm se organizado para exigir das empresas comportamento condizente com a realidade do país.

Mas elas parecem mais preocupadas com danos de imagem do que com multas. Discordo. A nossa legislação permite a aplicação de multas muito pesadas. No chamado cartel do oxigênio, uma única empresa foi multada em R$ 2 bilhões. Não acho que o problema seja o rigor com relação à aplicação das penas, mas sim a capacidade limitada da agência de concorrência em identificar todas as estruturas anticompetitivas. Temos projeto de reforma do órgão tramitando no Congresso, mas no lugar de se discutir se deve haver ou não aumento da estrutura de fiscalização, o debate tem sido voltado para a redução das penas. É uma clara inversão de valores.

Qual é sua avaliação sobre o desfecho da fusão entre Sadia e Perdigão, que criou a Brasil Foods? Nós nos perguntamos como o veto a essa operação seria efetivo. Buscamos a intervenção que produzisse efeito imediato, colocando parcela de responsabilidade no próprio mercado. Avaliamos uma empresa grande, com escala e escopo imensos, e que conseguia montar cadeia de produção e distribuição sem precedentes, com marcas muito fortes ¿ o pior possível para a concorrência. O que fizemos foi construir, na medida do possível, um agente com porte equivalente. Criamos um bloco de ativos produtivos integrados e tiramos, pelo menos por enquanto, a barreira imposta por duas marcas fortes. Agora, cabe a quem assumir esses ativos trabalhar com o mínimo de competência para se estabelecer no mercado. Não é nosso papel criar negócio sem risco.