Crimes de corrupção, em geral, são difíceis de desvendar. Quando cometidos por agentes públicos, a complexidade é ainda maior. Deve-se isso, entre outros fatores, ao óbvio anteparo da clandestinidade, que não produz testemunhas e acoberta atos limitados a dois agentes — o que corrompe e o que é corrompido — com parte direta no “malfeito”.

A essa particularidade se junta outra: ações contra o patrimônio público costumam ser bem distintas daquelas, mais visíveis, de banditismo comum. Exigem alto grau de complexidade, com o emprego de mecanismos que procuram dar às transações a aparência de legalidade, blindando arranjos cuja descoberta, quase sempre, depende da colaboração dos próprios envolvidos. Foi assim, por exemplo, na Operação Mãos Limpas, na Itália, e nas investigações que ajudaram a desbaratar grupos mafiosos nos EUA.

Essas dificuldades estavam presentes nas primeiras investigações do petrolão. Havia evidências de que o lulopetismo montara na Petrobras uma grande rede de corrupção. Sabia-se que o esquema, com partidos da base aliada do governo e empreiteiras, era responsável pelo desvio de dezenas de milhões de reais, via superfaturamento de contratos e pagamento de milionárias propinas, mas desembaralhar a teia só se tornou possível com a cooperação de presos nele implicados.

Graças a acordos de delação premiada, com presos aceitando a atenuação de penas em troca de denunciar outros envolvidos e detalhar como operava a rede de propinas, a Operação Lava-Jato ganhou um alcance que, afinal, revelou a real dimensão do maior caso de corrupção da História do país.

Os acordos foram feitos rigorosamente dentro da lei. Em 2013, o Brasil incorporou ao Código Penal esse eficaz mecanismo de investigação de crimes. E, pelo menos desde o século passado, a legislação do país já registrava episódios de colaboração de presos com o Ministério Público e a Justiça como forma de abrandar punições.

Além disso, registre-se que as delações foram acertadas sem que seus beneficiários tenham sofrido qualquer tipo de coação. Deu-se aos presos o direito, de resto não condenável, de negociar punições mais leves. Os acordos fechados com os envolvidos na rede de corrupção lulopetista têm de ser sancionados em juízo.

Outro fator a atestar a legitimidade das investigações, incluídas as delações, reside na particularidade de pedidos de habeas corpus de advogados de presos, contra os rumos das diligências na primeira instância, não terem alcançado êxito mesmo em órgãos hierarquicamente superiores da Justiça. Se vício houvesse nos procedimentos em curso, o Judiciário não os chancelaria.

De resto, denúncias investigadas a partir da delação premiada não são condenações a priori. Vale para esses casos o mesmo pressuposto do trâmite de qualquer processo, garantindo-se aos investigados o amplo direito de defesa, base de todo o arcabouço legal do Estado Democrático de Direito.

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Coação e afronta

A prova no processo penal é o meio que permite ao juiz formar a sua convicção sobre as alegações das partes — autor e réu —, possibilitando que o julgador venha a decidir de acordo com o que se contém nos autos do processo.

Em nosso sistema processual não há hierarquia entre as espécies de prova. Mas nem sempre foi assim.

A confissão já foi considerada a “rainha das provas”. Quando um acusado confessava um crime, a questão posta em juízo se considerava resolvida de forma definitiva. Tão importante era a confissão, que se admitia a tortura para obtê-la.

Hoje, o que mais se assemelha à tortura, por clara violação da ética e da racionalidade exigidas do Estado, é a figura da delação premiada.

A delação premiada, em regra, se dá na confissão por parte de um acusado da prática de crime cujo cometimento ele também atribui a terceiro(s). O “prêmio” pode ser a redução ou até mesmo a ausência de pena, desde que a colaboração seja considerada espontânea e eficaz.

O badalado instrumento tem sido objeto de acesos debates. Há os que o defendem como a grande solução para o combate à criminalidade, sobretudo à corrupção. Já no mundo jurídico, não são poucos os que veem na delação premiada uma afronta a caríssimos princípios constitucionais. Alinho-me com estes.

A delação premiada nada mais é do que o elogio da traição, do dedurismo puro e simples. Voltamos ao tempo em que o Estado admitia a sua própria impotência para a elucidação dos crimes. Só que agora não se pode mais alegar insuficiência de meios. O Ministério Público e a magistratura dispõem de um aparato material e tecnológico de largo alcance e de um arsenal legislativo que contempla os mais diversos tipos de crimes característicos da contemporaneidade.

Que fique claro: sem um forte componente de coação inexiste a possibilidade de colaboração do acusado. Esta não é o resultado das habilidades inquisitivas de juízes e procuradores ou de uma súbita conversão moral do delator, que quer é se safar da prisão e dos seus horrores. Nada, porém, garante a veracidade do que é dito em troca de uma vantagem.

A delação premiada é abertamente inconstitucional porque fere, entre outros, os princípios da moralidade pública, da isonomia e do contraditório, já que os delatados e a sua defesa não têm acesso ao ato de delação nem a chance de confrontar o delator. Legitima-se a hipótese da pena sem obediência a limites éticos e jurídicos, como nos “velhos tempos”.

A Constituição não deve ser vista como um obstáculo ao combate da corrupção. Desejamos que o enfrentamento com a criminalidade seja vitorioso, mas com o devido acatamento à Constituição e às leis. Que assim seja ou teremos o fim do Estado de Direito.