Na madrugada escura de 1º de julho de 2012, um domingo para o qual se anteviam sol e praias lotadas no Rio de Janeiro, a cidade, distraída, não se dava conta de que, em São Petersburgo, na efervescência das noites brancas, o Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco lhe concedia, por unanimidade, o título de Patrimônio Cultural na categoria paisagem cultural urbana. Acompanhada pelo então presidente do Iphan, Luiz Fernando de Almeida, por sua equipe altamente qualificada e diplomatas brasileiros na Unesco, passamos dias em reuniões, interlocuções e acertos finais que assegurassem o quase garantido título. Título esse, inédito, uma vez que o Rio não atendia às características de paisagem cultural da humanidade, um meio-termo entre patrimônio cultural e patrimônio natural.

Ao apresentarmos a inscrição sob o título “Rio de Janeiro: paisagens cariocas entre a montanha e o mar”, após alguns anos de argumentações, o organismo internacional aceitou a criação de um novo conceito, paisagem cultural urbana, no qual nossa proposta se inseria. Para assegurar a viabilidade da gestão pública da paisagem patrimonial, o Iphan considerou ser necessário delimitar o território ao Parque Nacional da Tijuca, parte do Centro e da Zona Sul da cidade. O entendimento introduzia uma nova visão de que seria preciso criar uma cartografia patrimonial, rompendo com a visão predominantemente historicista, e substituindo-a por abordagens mais amplas de compreensão do mundo, que devem, obrigatoriamente, considerar as relações entre o homem e o meio.

Com quatro séculos e meio de ocupações e intervenções desordenadas, não se poderia analisar a paisagem sem considerar a utilização humana da natureza e topografia da cidade. O Rio conta com a maior floresta urbana do planeta que, no entanto, após sofrer um período de desmatamento e plantio de mudas de cana e café, foi totalmente recuperada, resgatando, assim, sua característica nativa de floresta tropical. Nos fins do século XIX, a cidade viveu um forte crescimento demográfico, em grande parte devido à chegada dos ex-escravos libertos, vindos das fazendas de café, em decadência, do Vale do Paraíba. A crise habitacional se agravou ainda mais a partir das demolições em bairros populares para as obras do plano de remodelação da cidade que marcaram o período do prefeito Pereira Passos. Enfim, todos esses fatores estimularam a construção das primeiras e frágeis moradias nos morros cariocas e, daí em diante, uma expansão crescente de favelas que vem se dando até os dias de hoje, não só na região central, bem como junto a bairros de classe média e alta da Zona Sul carioca.

A incomum convivência de moradores de distintas condições sociais e econômicas coincidiu com o hábito, tipicamente do carioca, de transformar a praia em ponto de encontro, onde a informalidade quebra barreiras. Soma-se a isso o clima quente, a vida nas ruas, os bares e o temperamento cordial de seu povo.

A partir, basicamente, do samba, vieram as rodas, os terreiros, as escolas de samba e os blocos de variados ritmos que invadem toda a cidade nos períodos pré, pós e carnavalesco, propriamente dito. Se por um lado a ocupação desordenada alterou bastante a paisagem natural, é impossível pensar na cidade sem o carioca.

Ao apresentar esse cenário na defesa da proposta, ao mesmo tempo em que o painel projetava imagens da cidade, despudoradamente sedutora, testemunhei o estado de encantamento generalizado do comitê, como se a aprovação garantisse a cada membro sua cidadania.

Ana de Hollanda foi ministra da Cultura