A sexta-feira 15 de março de 1985 amanheceu cinzenta em Brasília. Havia chovido forte na noite anterior. Mas a ausência de cores se devia mais a incertezas políticas do que às condições do tempo. O primeiro presidente civil eleito, depois de 20 anos de governos militares, deveria tomar posse naquela manhã, em sessão no Congresso Nacional. Em vez disso, estava sobre uma maca na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital de Base e jamais ocuparia o Palácio do Planalto. O fato marcaria a história política brasileira pelos 30 anos seguintes, deixando incompleto o processo de redemocratização do país. Tancredo Neves havia sido operado às pressas durante a madrugada para a retirada de um tumor no intestino. Depois da cirurgia, teve crises respiratórias, hipertensão e taquicardia. O quadro piorou ainda mais nos dias seguintes. Foi transferido para o Instituto do Coração, em São Paulo, mas morreu 39 dias depois da primeira cirurgia, em 21 de abril. Governador de Minas Gerais, ministro de Getúlio Vargas, primeiro-ministro do curto período parlamentarista de João Goulart, agora vitorioso no colégio eleitoral, Tancredo de Almeida Neves encarnava a esperança de milhões de brasileiros pela redemocratização depois de 20 anos. Esse homem, que havia completado 75 anos em 4 de março, nunca assumiria o cargo para o qual foi eleito. Sua morte deixava no ar uma grande interrogação, que até hoje faz sombra sobre o cenário político do país. “Foi uma situação extremamente interessante, delicada e perigosa”, resume o ministro do Trabalho nomeado por Tancredo Neves, o advogado e ministro aposentado do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Almir Pazzianotto. No lugar de Tancredo, assume o vice, José Sarney, que cumpre cinco anos de mandato, convoca uma Constituinte, enfrenta milhares de greves e um período de hiperinflação. Na tentativa de vencer a crise, edita dois planos econômicos, Cruzado 1 e Cruzado 2. “Com o impedimento de Tancredo, a transição ficou incompleta”, avalia o exministro do trabalho, que acaba de escrever o livro A Transição 1985-1988. “Tancredo queria fazer a reforma sindical, com ratificação da Convenção 87 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que acaba com o sindicato único e com a contribuição sindical. Mais de 150 países já ratificaram. No Brasil, o pedido foi enviado ao Congresso pelo presidente (Eurico Gaspar) Dutra, em maio de 1949, mas nunca foi aprovado”, conta Pazzianotto. O texto já foi referendado pela Câmara, mas empacou no Senado. “Em 1986, quase consegui levar a mensagem do Dutra para aprovação do Senado, mas o senador (José) Richa pediu vista e o texto nunca mais voltou”, conta. Segundo o ex-ministro, Tancredo queria não só aprovar a ratificação, mas também celebrar um pacto social como instrumento de pacificação, “pelo menos até que a transição política se concluísse, para evitar aquela sucessão de greves”. A Constituição já sofreu mais de 80 emendas e tem uma série de dispositivos ainda não regulamentados e, portanto, não aplicados. Além disso, diz Pazzianotto, “não proporcionou as condições para se atingir aquilo que a sociedade deseja em matéria de saúde, família, trabalho, segurança”. “E veja que agora a Constituição está sendo submetida a um novo teste, com a história do impeachment, que, embora previsto na Constituição, é um remédio caro e talvez ineficaz”, diz.

Atraso

“O desaparecimento de Tancredo mudou muito a história do Brasil, e para pior”, avalia o assessor internacional do presidente, Rubens Ricupero, que seria ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique. “Perdemos 10 anos ou mais por causa da morte dele”, diz.“A história dos últimos 30 anos teria sido bem diferente se não o tivéssemos perdido naquele momento. Desse ponto de vista, foi uma tragédia”, avalia Ricupero. O ex-ministro diz ter certeza de que a Constituição seria outra sob a liderança do mineiro. “Tancredo jamais teria perdido o controle do processo. Ele era o homem forte do PMDB. A Constituição teria sido muito diferente, sobretudo em matéria de gastos públicos, porque ele tinha obsessão por isso.” Pela mesma avaliação, o país não teria chegado à hipertinflação e nem recorrido a uma política econômica heterodoxa. “Estaríamos em estágio mais amadurecido das instituições e não teríamos a fragilidade de hoje, quando vivemos um retrocesso. Embora não tenha voltado a hiperinflação, estamos com uma inflação que ameaça cada vez mais escapar ao controle; estamos de novo com o problema dos gastos públicos e podemos ter crise no balanço de pagamento”, diz.

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Os 30 anos do dia que mudaria o país

Trinta anos atrás, eu era repórter na área de política externa. A fim de me desincumbir com eficiência da tarefa, voltei à universidade para cursar cadeiras de relações internacionais, ministradas por embaixadores aos quais ouvia e entrevistava no Itamaraty. Para o jornalismo daquela época, o setor dava mais ibope que a política interna. O Brasil começava a ter a importância (o peso específico, no jargão dos diplomatas) reconhecida.

Tanto a direita quanto a esquerda torciam pelo advento da Nova República. Tancredo era o cara! Natural que para a sua posse quisesse vir todo o mundo. Na manhã de 14 de março de 1985 (era quinta-feira), os primeiros a chegar vinham de mais perto: os presidentes Raúl Alfonsín, da Argentina, e Julio María Sanguinetti, do Uruguai. À tarde, a revoada de aeronaves na Base Aérea ficou mais intensa. Até um Ilyushin, de fabricação soviética, trouxe a bordo o charmoso comandante sandinista Daniel Ortega, presidente da Nicarágua. O então ministro das Relações Exteriores, Ramiro Elísio Saraiva Guerreiro, cumpria a protocolar recepção, descansando na estação de passageiros entre um pé de escada de avião e outro. Tudo transcorria de acordo com o previsto até o fim da missa, da qual o presidente eleito saiu com a mão no baixo ventre e uma careta de dor. Um raio não teria tido efeito maior do que essa notícia na redação. E agora? Com o redentor deitado numa mesa de cirurgia no Hospital de Base, quem assumiria a nação? O vice-presidente ou o presidente da Câmara dos Deputados? Pela falta de uso, não estava à mão a Constituição, guardada na biblioteca do Correio, que já tinha fechado as portas.

O meio mais rápido era alguém trazer a Carta Magna até nós. Foi o que fez meu sobrinho Eduardo Sabo, que, a bordo de sua moto, veio com a mochila do curso de direito da UnB até a redação nos salvar. Enquanto o Brasil inteiro discutia se seria Sarney ou Ulysses a substituir o enfermo em tão má hora, voltei à Base Aérea para uma última cobertura. Eram mais de duas horas do dia 15 de março quando desembarcou o gigante cubano, cujo olhar agudo impressionou quem o esperava. Mesmo a distância, deu para entender, por leitura labial, a pergunta do atônito Fidel Castro a um diplomata brasileiro: “Qué pasa?” Passaram-se as horas, raiou o dia e voltei para casa. Depois de um banho, me vesti para chegar cedo à posse no Palácio do Planalto. Quando José Sarney, emocionado, abriu o discurso dizendo “Estou com os olhos de ontem”, comentei baixinho no quadrado da imprensa, em frente às autoridades: “Eu também, presidente”. Assim, tresnoitada, vi renascer a democracia.