No ano em que a crise hídrica se agravou no Brasil, o país registrou 127 conflitos por água, mostra relatório feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). O número de 2014 é o maior desde que o levantamento começou, em 2005. Se multiplicarmos as 42.815 famílias envolvidas pelo número médio de cinco pessoas que compõem uma família rural, conforme a metodologia usada pelo estudo, 214.075 brasileiros foram afetados pela luta por recursos hídricos. Os registros mais recorrentes são ações de resistência, em geral coletivas, para garantir o uso e a preservação da água e lutas contra a construção de barragens e açudes. Os conflitos resultaram em 36 assassinatos em 2014, dois a mais do número registrado no ano anterior.

O cenário seria ainda mais grave se o levantamento incluísse áreas urbanas, pois traria o impacto da crise hídrica no Sudeste. “Ao somarmos a população do Rio de Janeiro, de São Paulo e do interior do estado, temos mais de 37,8 milhões de brasileiros urbanos, de alguma forma envolvidos nesses conflito”, diz o texto da Comissão Pastoral da Terra. Os dois estados entram em disputa pelo uso da água do Rio Paraíba do Sul, que afetou ainda Minas Gerais. A falta de água em centros urbanos médios e grandes obrigou os governos estaduais e federal a fazerem obrasrápidas para abastecer pessoas no seu uso cotidiano, como a Adutora Pajeú, em Pernambuco, cujas obras foram encerradas em 2014.

Para Isolete Wichinieski, integrante da CPT, o principal destaque é o deslocamento das lutas pelo país. “Nos primeiros anos, os conflitos eram maiores na Região Norte, nos estados do Pará e Rondônia. De uns anos para cá, Minas Gerais e Bahia têm se destacado devido ao avanço das mineradoras e da construção de barragens”, afirmou. Ela chama a atenção ainda para o fato do número de conflitos no segundo semestre do ano passado. “Em ano eleitoral, normalmente os casos se reduzem”, afirma Wichinieski. Tanto em Minas Gerais quanto na Bahia foram registrados 26 conflitos. Ao se considerar todo o período de 2005 a 2014, observa-se que o número de famílias atingidas é maior em estados onde há grandes projetos de desenvolvimento econômico. No Pará, 69.302 famílias foram afetadas em lutas hídricas, a maioria devido à construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, na região de Altamira.

Futuro
Na avaliação de Antonio Carlos Zuffo, especialista em recursos hídricos da Unicamp, a estiagem pode ter influenciado o aumento de ocorrências no ano passado e a tendência é de que o cenário se agrave no futuro devido aos períodos de seca cada vez mais prolongados em diversas regiões do país. “É faltar água que os conflitos aparecem. Como a previsão é que o volume de chuvas será menor nas próximas décadas do que nos últimos anos, isso vai ser um potencial de crise”, afirma.

Segundo a CTP, a construção do Complexo Hidrelétrico Tapajós, que inclui sete usinas ao longo de dois rios no oeste do Pará, vai impactar diretamente 32 comunidades tradicionais, entre quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, extrativistas e cerca de 2 mil quilômetros de territórios indígenas. “A solução para a crise hídrica instalada não está em tecnologias de ponta e novas obras. Elas só ajudarão na superação do problema se uma ética anterior de respeito pelo ciclo das águas for instaurada na governança hídrica brasileira”, afirma o relatório.

“Nos primeiros anos, os conflitos eram maiores na Região Norte, nos estados do Pará e Rondônia. De uns anos para cá, Minas Gerais e Bahia têm se destacado devido ao avanço das mineradoras e da construção de barragens”
Isolete Wichinieski, integrante da Comissão Pastoral da Terra