Neste mundo, ha finais que tambem sao comecos, mortes que sao nascimentos, disse o escritor uruguaio Eduardo Galeano quando Jose Saramago morreu, em 2010. Ontem, foi o dia do autor de As veias abertas da America Latina abrir a possibilidade de eternizar sua obra por meio de um fim. O autor, de 74 anos, nao resistiu ao cancer de pulmao que o mantinha internado em Montevideu desde sexta-feira. 

A memoria sempre foi o norteador do trabalho de Galeano, que esteve em Brasilia no ano passado durante a segunda edicao da Bienal Brasil do Livro e da Leitura, quando recebeu homenagens ao lado do escritor paraibano Ariano Suassuna. Na ocasiao, relembrou os 50 anos do golpe militar brasileiro e leu, diante de mil pessoas, entre outros contos, Agosto 30. Dia dos Desaparecidos, que classificou como os mortos sem tumbas, as tumbas sem nome. 

Embora As veias abertas... seja a obra mais famosa considerada um classico da literatura latino-americana, traduzida em mais de 20 idiomas Galeano, jornalista, ensaista, ficcionista, intelectual, militante e amante de futebol, escreveu mais de 30 livros, quase todos traduzidos no Brasil, e se mostrou versatil e lucido em tudo o que produziu. Antes de se tornar um intelectual destacado da esquerda latino-americana, Galeano trabalhou como operario industrial, desenhista, pintor, mensageiro, datilografo e caixa de banco, entre outros oficios. 

Quando o classico que o consagrou foi publicado, Galeano tinha 31 anos e admitiu, em entrevistas e palestras que fez ao longo da vida, nao ter, naquela epoca, formacao suficiente para a tarefa a qual se dispos. Nao me arrependo de te-lo escrito, mas e uma etapa que, para mim, esta superada, acrescentou. 

O livro, no entanto, ainda mobiliza leitores em todo o mundo. Em 2009, durante a 5 Cupula das Americas, o entao presidente da Venezuela, Hugo Chavez, presenteou seu colega norte-americano, Barack Obama, com um exemplar de As veias abertas da America Latina, que havia sido proibido nos anos 1970 pela censura das ditaduras militares do Uruguai, Argentina e Chile. Na epoca do presente de Chavez a Obama, o livro saltou em um so dia da 60.280 para a 10 posicao na lista de mais vendidos da Amazon. 

"Eu nao viajo para chegar. Viajo para ir

Escritor


Nascido em Montevideu em 3 de setembro de 1940, Eduardo Galeano comecou muito jovem no jornalismo, nos mais variados generos literarios como o ensaio, a poesia e a prosa. A partir de Veias abertas da America Latina, o autor construiu um estilo muito particular de escrita, com analises costuradas a narrativa. As veias foi um ponto de partida, nao de chegada. A partir dali, fui desenvolvendo uma linguagem propria. Encontrei outros estados, outros perfis e outros temas da realidade, comentou em fevereiro de 2013, em uma entrevista ao Coletivo de Escritores Aristoteles de Espanha. 

A producao literaria de Galeano esta entrelacada a militancia politica que o conduziu ao longo da vida. Combinando analise politica com jornalismo e ficcao, Galeano desvendou a alma da America Latina em obras como Memoria do fogo, trilogia em que dissecava as principais figuras historicas no periodo colonial do continente, o que lhe rendeu comparacoes a John Dos Passos e Gabriel Garcia Marquez. 

A caracteristica multidisciplinar do autor se manifesta com muita clareza em Livro dos abracos (1989), uma colecao de historias curtas e muitas vezes liricas, apresentando as visoes de Galeano em relacao a temas diversos como emocoes, arte, politica e valores. 

"Tudo esta ai. Saio ate a rua todo dia com meus ouvidos e olhos bem limpos para ouvir as vozes secretas  descobrir as cores escondidas. Sou um acador de historias, m escutador de vozes 

Militante 

O escritor se tornou um nome importante do pensamento de esquerda latino-americana, com a publicacao de As veias... em que analisa a historia do continente, a partir do periodo colonial, com argumentos contra o que considerava exploracao economica e politica do povo latino-americano pela Europa e pelos Estados Unidos. O livro se tornou leitura obrigatoria entre os intelectuais de esquerda latino-americanos, mas foi censurado. O escritor foi forcado a se exilar na Argentina apos o golpe militar no Uruguai, em 1973. 

Na Argentina, lancou a revista Crisis. Porem, em 1976, outro golpe militar, dessa vez liderado pelo general Jorge Videla, coloca novamente sua vida em risco em territorio argentino. 

"Em seus 10 mandamentos, Deus esqueceu-se de mencionar a natureza. Entre as ordens que nos enviou do Monte Sinai, o Senhor poderia ter acrescentado, Por exemplo: Honraras a natureza, 
da qual tu es parte


Intelectual 

Eduardo Galeano e referencia de pensamento e critica social e politica, especialmente na America Latina. Toda a producao do autor e fruto de observacoes apuradas e reflexoes consistentes. Ensaista comprometido com as causas da esquerda, explorou em suas obras as profundidades e os contrastes dos paises latino-americanos. 

Em 2006, Galeano se juntou a outros nomes de referencia como Gabriel Garcia Marquez, Mario Benedetti, Ernesto Sabato, Thiago de Mello e Pablo Milanes na assinatura da Proclamacao de Independencia de Porto Rico do Congresso Latino Americano e Caribenho. 

O escritor, cuja educacao formal nao passou do primeiro ano do Ensino Medio, afirmou ter aprendido a arte de contar historias nos antigos cafes da capital uruguaia, dos quais era um cliente assiduo. Tive a sorte de conhecer Scheherazade; nao aprendi a arte de contar historias nos palacios de Bagda, minhas universidades foram os antigos cafes de Montevideu; os contadores de historias anonimos me ensinaram o que eu sei, disse o autor em outubro de 2009, em Madri. 

Galeano comecou a carreira de jornalista aos 14 anos, quando publicou sua primeira caricatura no jornal El Sol, do Partido Socialista do Uruguai, sob a assinatura de Gius, onomatopeia ironica de seu sobrenome de origem galesa. 

Entre 1961 e 1964 ele foi editor da prestigiada revista Marcha, dirigida por Carlos Quijano e que era reduto de intelectuais latino-americanos, para qual tambem escrevia Mario Benedetti. Em seguida, foi diretor do jornal independente de esquerda Epoca (1964-1966). A carreira de escritor tomou grande parte do seu tempo nos anos seguintes. 

"O arbitro (de futebol) e arbitrario por definicao. Este e o abominavel tirano que exerce sua ditadura sem oposicao possivel e o verdugo afetado que exerce seu poder absoluto com gestos de opera 

Amante do futebol 

Fa de futebol, Galeano sonhava em ser jogador e acreditava que o jogo no campo era como uma performance teatral. O autor foi considerado o Pele da literatura sobre o esporte pelo jornal britanico The Guardian, que listou as obras mais importantes sobre o tema para serem lidas durante a Copa do Mundo do ano passado. Nenhum dos livros indicados, de acordo com o jornal, superaria O futebol ao sol e a sombra, publicado em 1995. 

No livro, o uruguaio narra a final da Copa de 1950, no Rio de Janeiro, episodio que entrou para historia do futebol como Maracanazo, quando o Brasil perdeu em casa por 2 a 1 para o Uruguai. 
Em entrevista coletiva durante a Bienal do Livro do ano passado, em Brasilia, Eduardo Galeano disse que nao acredita em especialistas, principalmente quando o assunto e futebol. O torcedor do time uruguaio Nacional afirmou que especialistas em futebol sao perigosos para a sociedade e que os times do continente foram sequestrados pelos interesses economicos da industria do esporte. Os clubes foram sequestrados pelos dirigentes, pela politica. Mas esta surgindo esse movimento de recuperacao dos clubes para que voltem a ser o que eles querem ser: um conjunto de pessoas ligadas por um amor a uma camiseta e nao por interesses economicos, disse.