Casos de estupro de meninas kalungas na região da Chapada dos Veadeiros serão investigados pela Comissão de Direitos Humanos e pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados que trata da violência contra jovens negros e pobres. ...

Os parlamentares agendarão uma visita às comunidades quilombolas e a Cavalcante, município goiano distante 310km de Brasília, onde as crianças são vítimas de abusos sexuais, principalmente por parte dos patrões, para quem trabalham como domésticas, em troca de abrigo, comida e oportunidade de estudo. A violência foi revelada pelo Correio nas edições de domingo e de ontem. A denúncia motivou as representações por parte de deputados federais.

Representantes da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e da Câmara dos Deputados debateram o assunto, ontem. Eles definiram ações, como diligências a Cavalcante e pedidos de explicações a autoridades da cidade e de Goiás. “Essas são violações graves, não podem ficar impunes. Sabemos que, quando há poder político e econômico, é mais difícil romper a barreira da impunidade, mas vamos pedir que o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) forme uma comissão para acompanhar as investigações. Os culpados devem ser punidos”, ressaltou a deputada federal Érika Kokay (PT-DF), da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

Para o presidente da comissão, deputado Paulo Pimenta (PT-RS), os abusos contra crianças e adolescentes descendentes de escravos devem ser investigados na esfera federal, caso os inquéritos da Polícia Civil não sejam levados adiante pelo Ministério Público e pela Justiça goiana. “Já estamos levantando mais informações. Na próxima sessão (na primeira semana de maio), vamos debater sobre o caso de Cavalcante, e eu, pessoalmente, vou à cidade para saber como estão as investigações”, garantiu o parlamentar.

O Correio mostrou que, mesmo sem estrutura e gente suficiente — a delegacia do município não tem delegado —, agentes e escrivães lotados em Cavalcante desde dezembro decidiram priorizar os casos de estupro de vulnerável (nos quais a vítima tem menos de 14 anos) engavetados. Até agora, concluíram oito inquéritos. O mais recente tem como indiciado o vice-presidente da Câmara Municipal, Jorge Elias Ferreira Cheim (PSD), 62 anos. Há duas semanas, um laudo comprovou o estupro da menina kalunga de 12 anos que morava na casa dele. O delegado Diogo Luiz Barreira, que fica em Alto Paraíso e responde também por Cavalcante, pediu a prisão preventiva de Cheim. Além de vereador por três mandatos, o acusado é ex-prefeito e marido da atual vice-prefeita do município, Maria Celeste (PSD).

Convocação

O deputado federal Roberto Alves (PRB-SP) apresentará, na sessão de hoje da CPI da Violência (leia Para saber mais), um requerimento convocando a promotora de Justiça de Cavalcante, Úrsula Catarina Fernandes Siqueira Pinto. Respondendo pela Comarca do município há 18 anos, ela é casada com um primo de Cheim. O pedido de prisão preventiva e o inquérito contra o vereador estão com Úrsula. A amigos e policiais da cidade, ela disse que deve se declarar suspeita na fase de ação judicial. A Corregedoria-Geral do Ministério Público de Goiás (MPGO) analisa reclamação autuada no mês passado contra o trabalho da promotora. Na denúncia, moradores reclamam de suposta lentidão e de falta de resposta às denúncias de crimes cometidos em Cavalcante.

No caso do vice- presidente da Câmara de Cavalcante, o caso começou a ser investigado em 27 de outubro, após denúncia ao Conselho Tutelar. Em 25 de dezembro, o Judiciário negou o primeiro pedido de prisão preventiva, pois, à época, conforme o delegado, faltava o laudo. Úrsula recebeu o inquérito em 6 de abril, com a perícia comprovando a conjunção carnal. Nele, a Polícia Civil pediu novamente a prisão do vereador. Em depoimento, ele negou o crime. Alegou ter levado a vítima para morar na casa dele devido às dificuldades financeiras da família dela, moradora de um povoado quilombola distante 100km da sede do município. Sobre a falta de autorização judicial para cuidar da criança, ressaltou que a promotora sabia de tudo. 

Enquanto na esfera federal parlamentares e integrantes de organizações em defesa dos direitos humanos se mobilizam, as autoridades de Cavalcante e de Goiás não anunciaram qualquer providência sobre os casos exploração do trabalho infantil e de estupros das meninas kalungas. Procurados, o prefeito João Pereira Neto (PTC) e os vereadores locais não deram entrevista. O vereador Cheim e a promotora não foram encontrados pela reportagem.

Na comunidade de Engenho, a 27km de Cavalcante, desde que a escola municipal ganhou o ensino médio, as famílias não precisaram mais enviar as filhas para a cidade.

 

Vítimas negras e jovens

A Câmara dos Deputados instalou, em 26 de março, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a violência contra jovens negros e pobres no país. O grupo apura causas, razões, consequências, custos sociais e econômicos da violência, morte e desaparecimento desse grupo. A iniciativa partiu do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG). Ele é o presidente da comissão.

Segundo dados do Mapa da Violência de 2014, a taxa de homicídios no Brasil aumentou 148,5%, de 1980 a 2012, com mais de 1,2 milhão de vítimas. A pesquisa revela ainda que, das 56.337 pessoas assassinadas no Brasil em 2012, mais de 30 mil vítimas são jovens e, destas, 92% são homens e 77%, negros.

Em algumas capitais do Nordeste, por exemplo, a taxa de homicídio de jovens assume contorno ainda mais dramático e chega a ser 10 vezes maior do que o índice nacional, que é de 29 para cada 100 mil habitantes.