A discussão sobre a redução da maioridade penal no país, um tema que divide opiniões e provoca debates acalorados em um país com 581.507 presos, teve um passo importante ontem na Câmara dos Deputados. Depois de mais de 21 anos parada, a Proposta de Emenda à Constituição nº 171, de 1993, que altera a maioridade de 18 para 16 anos, foi aprovada pela Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) com 42 deputados a favor do relatório do deputado Marcos Rogério (PDT-RO) — favorável à admissibilidade da proposta — diante de 17 votos contra. O texto segue para análise de uma comissão especial criada pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), horas após a decisão da CCJ. O grupo tem até 40 sessões para discutir o tema antes de ir para o plenário.
Partidos contrários à redução da maioridade, como o PT, o PSol e o PCdoB, estudam entrar com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal (STF) para impedir a tramitação da PEC. De acordo com o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), a proposta deveria ser arquivada por alterar uma cláusula imutável da Constituição. “O artigo é muito claro ao dizer que não será apreciada proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais e foi isso que se fez aqui hoje”, afirmou Molon. O parlamentar alertou ainda que a decisão pode abrir portas para reduzir a maioridade ainda mais. “No fundo, o que a CCJ decidiu é que basta uma idade penal mínima qualquer, ainda que ela seja de seis meses de idade”, completou.
O deputado Marcos Rogério defende a redução da maioridade para 16 anos e afirma que a medida não fere direitos individuais e é necessária devido a mudanças históricas. “Não estamos abolindo uma garantia. Estamos modificando um texto para se tornar mais adequado para a realidade do Brasil (...) o jovem de hoje não é o mesmo da década de 1940. Os jovens estão amadurecendo mais cedo”, afirmou. A deputada Keito Otta (PSB-SP), que teve o filho de 8 anos assassinado em 1997, afirma que a PEC dá voz às vítimas de violência e atende aos pedidos das ruas. “Estamos dando uma resposta a 93% da população brasileira que clama por esse momento. É o reflexo do pavor de serem vítimas desses menores infratores que fazem barbaridades.” Para ela, esse é um grande passo para acabar com a impunidade no país.
“Ela (a PEC) visa reduzir um direito individual, o que é expressamente proibido”, afirmou o deputado Luiz Couto (PT-PB), relator após o parecer original na CCJ, contrário à admissibilidade da proposta, vencido por 43 a 21 votos. Ele também destacou a ineficácia da medida para reduzir a violência. Segundo dados do Ministério da Justiça, menos de 1% dos homicídios foram cometidos por menores de 18 anos. Do total de jovens que cumprem medidas socioeducativas, a maioria cometeu crimes patrimoniais, como furto e roubo (43,7% do total), e envolvimento com o tráfico de drogas (26,6%).
A ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Ideli Salvatti, avalia que é preciso intensificar o trabalho de mobilização contra a PEC. De acordo com ela, a maioria dos secretários estaduais de segurança pública assinou ontem uma moção contra a redução da maioridade penal. “Vamos precisar de fôlego e energia para que não tenhamos esse retrocesso na legislação brasileira”, disse.
Embates
A fim de evitar tumultos como os da semana passada, a entrada de ativistas a favor e contrários à proposta foi limitada a 15 pessoas de cada grupo. Aqueles a favor da PEC seguravam cartazes com frases como “O Brasil pede a redução da maioridade penal”. Já manifestantes contra a redução exibiam faixas com “mais escolas e menos cadeias” e “crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento e necessitam de uma proteção especializada, diferenciada e integral”. Eles gritaram “não à redução” e “fascistas não passarão” durante a votação.
Desde o início da sessão, PT, PSol e PCdoB usaram manobras regimentais a fim de impedir a votação, mas foram vencidos. Eles tentaram sem sucesso evitar a inversão de pauta para que o projeto fosse o primeiro item a ser discutido e retirarasse o tema da pauta, além de promoverem obstrução, se revezando em longos discursos. Já parlamentares favoráveis se pronunciaram brevemente, a fim de agilizar o debate.
Para o professor de direito constitucional André Lopes, há duas visões sobre a constitucionalidade da proposta. “Há quem sustente que o artigo 228 (da Constituição) trata de um direito fundamental e é imutável. Nem o Congresso poderia por emenda suprimir o direito.” Os artigos 60 e 5º reforçam esse entendimento. Contudo, a ausência de uma previsão constitucional que proíba claramente a redução da maioridade e o fato de o Supremo ter se pronunciado sobre o assunto sustentam a tese que permite a alteração.
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Repercussão na sociedade civil
Entidades de direitos humanos, governos, magistrados, especialistas e religiosos condenam a tentativa de redução da maioridade penal. A avaliação é que a PEC 171, de autoria do então deputado federal Benedito Domingos (PP-DF), não colaboraria para diminuir a criminalidade. A Conferência Nacional dos Bispos (CNBB) divulgou nota alertando que a iniciativa é uma “negação da Doutrina da Proteção Integral que fundamenta o tratamento jurídico dispensado às crianças e adolescentes pelo direito brasileiro”. A nota diz que “a Igreja no Brasil continua acreditando na capacidade de regeneração do adolescente quando favorecido em seus direitos básicos e pelas oportunidades de formação integral nos valores que dignificam o ser humano”.
A Cáritas alertou que a medida atingiria jovens da periferia. “Cabe destacar que as medidas atingem principalmente os jovens marginalizados e as marginalizadas, negros e negras, aqueles que moram na periferia, que já tiveram todos os seus direitos de sobrevivência negados previamente”, diz, em manifesto. A voz dissonante na igreja foi do arcebispo da Paraíba, Aldo Pagotto. Em missa no último domingo, defendeu a redução da maioridade penal, para levar às prisões “cavalões de 14, 15 e 16 anos”.
O secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, reclamou que a polícia “enxuga gelo e sofre com as lacunas da legislação”, dizendo que os adolescentes são apreendidos e logo depois estão de volta às ruas.
O secretário executivo da ONG Viva Rio, Rubem César Fernandes, avalia que a medida aumentaria “em muito” a população prisional. “É uma falsa solução. O problema da criminalidade adolescente é gravíssimo, mas a solução passa por uma revisão radical no Judiciário e nas medidas educativas”, disse. De acordo com o especialista, o estado não teria condições de aplicar a alteração, pelo aumento da população prisional. “Reduzir a maioridade agrada a plateia, mas não resolve”, disse.
Violência
O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), João Ricardo Costa, disse que a entidade vê a iniciativa “com bastante preocupação” e que vai “trabalhar para que isso não aconteça”. “A política para a redução da criminalidade tem que passar, necessariamente, pela redução da violência social”, diz. O magistrado lembra que a lei de crimes hediondos não colaborou para a diminuição da criminalidade. “A redução da maioridade penal resultará no recrudescimento da violência e da criminalidade.” Segundo avaliação da AMB, a maioridade penal é “cláusula fechada” da Constituição e não poderia ser alterada.
A ouvidora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, juíza Andréa Pachá, lembra que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não conseguiu, em 25 anos, implementar plenamente direitos de educação, saúde e outros. “Agora, a solução que se apresenta é o encarceramento dessa parcela da população. Estão lidando com o assunto como se o adolescente infrator aparecesse espontaneamente e não pela ausência do Estado”, diz.
A gerente de Qualificação da Andi Comunicação e Direitos, Suzana Varjão, classificou a proposta como “um grande erro”. “Os adolescentes são cooptados para o crime pelos adultos, por falta de proteção do Estado”, diz. “Na prisão, o adolescente será violentado, vai aprender técnicas de infrações e de crimes muito mais sérios e vai sair muito mais agressivo”, avalia.
O secretário executivo da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, Vitor Alencar, considera que a iniciativa “tira atenção dos reais desafios da juventude: reduzir a desigualdade social, ampliar programas de cultura, esporte e lazer, dar atenção a comunidades violentas”.
Para o consultor jurídico Paulo Castelo Branco, o ideal seria avaliar cada caso separadamente. “Toda criança ou adolescente que cometesse crimes de potencial agressivo seria submetida a uma junta de médicos, psicólogos, com a participação do Ministério Público, para que se pudesse fazer a avaliação do grau de periculosidade”.
Já a presidente do Conselho Nacional da Juventude (Conjuve), Ângela Guimarães, disse que a iniciativa se baseia na exceção e não na regra. “Cinquenta e um anos depois do golpe de 1964, o Congresso opera uma afronta contra a democracia e contra a juventude brasileira”, disse. “Os jovens precisam de mais atenção, oportunidade, proteção e integração, como previsto no ECA.”