Há 75 anos, viver em São Paulo garantia 256 litros diários por habitante; atualmente, Sabesp fornece somente 221 litros/dia

Enfrentar até duas horas de fila para encher garrafões de água na rua já faz parte da rotina do garagista Expedito Carvalho, de 57 anos. A bica localizada na frente de uma igreja evangélica da Vila Curuçá, zona leste de São Paulo, virou uma "fonte sagrada" para ele e centenas de outros moradores da região, que já não podem mais depender somente da rede pública de abastecimento, sob o risco de ficarem dias a seco.

 

 

Hoje, comemora-se o Dia Mundial da Água e, com a crise hídrica na região metropolitana, a oferta de água per capita na cidade caiu a patamares inferiores a de 1940. Há 75 anos, a produção de água (3.970 l/s) para atender 1,3 milhão de paulistanos garantia uma média de 256 litros por habitante/dia. Atualmente, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) produz 30.240 l/s para atender 11,8 milhões de moradores da capital, ou 221 litros por pessoa ao dia.

 

 

 

 

As duas horas na fila são vistas como solução na Vila Curuça

As duas horas na fila são vistas como solução na Vila Curuça

 

 

 

 

 

"A gente usa a água da Sabesp para fazer limpeza e tomar banho, mas não é suficiente. Aqui a gente perde até duas horas para conseguir encher as garrafas para beber", contou Carvalho, que sofre os efeitos da diminuição da pressão e do fechamento da rede feitos pela companhia para reduzir a distribuição de água e evitar o colapso dos sistemas de abastecimento, como o Cantareira. Com o racionamento, aliado à economia espontânea da população, a produção de água na Grande São Paulo caiu de 69 mil l/s antes da crise, ou 298 litros por habitante/dia, para os atuais 51 mil l/s, produção equivalente a de 1992, quando mais de 5 milhões de pessoas sofriam rodízio permanente.

 

 

 

Em artigo publicado em julho de 2014 em uma revista da Sabesp, o arquiteto e urbanista Ricardo Toledo Silva, atual secretário adjunto de Energia, afirmou que a oferta de água per capita em 1940 não era baixa se comparada a padrões contemporâneos, mas destacou que o abastecimento cobria só 50% dos domicílios urbanos. Ou seja, quem tinha acesso à água naquela época recebia o dobro dos recursos de hoje. A vantagem agora é que, embora a oferta seja menor, o abastecimento de água é universalizado.

 

 

 

"Em 1940, o gasto industrial era menor e sobrava mais para os habitantes. Hoje é o contrário e, por isso, tem menos água disponível para o habitante", explicou José Galizia Tundisi, pesquisador do Instituto Internacional de Ecologia. Ele defende que os setores da indústria, comércio e serviços utilizem cada vez menos a água da Sabesp para sobrar mais recursos para a população. "Uma das soluções seria utilizar água para reúso em grande escala. O ideal seria ter água potável só para abastecer a população."

 

 

 

Investimento. A mestre em ciência ambiental e secretária-geral da ONG WWF, Maria Cecília Wey de Brito, explicou que a região metropolitana foi altamente adensada nesse período de forma desordenada e as obras de saneamento não acompanharam o crescimento urbano. "O último grande investimento em armazenamento e captação foi o Cantareira, na década de 1970. Depois, os esforços praticamente pararam."

 

 

 

A Sabesp destacou, contudo, que foi a conclusão do Sistema Alto Tietê, na década de 1990, o segundo manancial em capacidade de armazenamento, que permitiu o fim do racionamento em 1998. E a capacidade de produção hoje é maior do que a demanda. Para o Sérgio Werneck Filho, presidente da Nova Opersan, empresa especializada em tratamento de água e esgoto, mudanças de hábito da população e melhorias na gestão do sistema permitem que a oferta de água per capita seja menor do que no passado. "Mas o lado bom da crise é a compreensão de que é preciso investir em fontes alternativas, como reúso."

 

No Nordeste, rodízio vira rotina e banho de chuveiro é exceção

TIAGO DÉCIMO / SALVADOR, ANGELA LACERDA / RECIFE - O ESTADO DE S.PAULO

 

Caixas d'água grandes, sistemas de captação da chuva, tanques reservas, poços artesianos e tonéis são arsenal anticrise

O fantasma do rodízio de água, que hoje assombra os habitantes da Grande São Paulo, é realidade de boa parte das maiores cidades nordestinas. Por causa da frequência com que vivem com torneiras secas, muitos moradores desenvolveram estratégias para evitar que a rotina seja alterada nos dias sem fornecimento. Caixas d'água grandes, sistemas de captação da chuva, tanques de reserva, poços artesianos e tonéis estão no arsenal.

 

 

Em Campina Grande, segunda maior cidade da Paraíba, com 400 mil habitantes, os moradores estão em rodízio desde dezembro - o abastecimento é interrompido no sábado e retomado na segunda-feira.

 

A casa da farmacêutica Tricya Farias, de 39 anos, onde mora com os pais e o filho de 2 anos, na parte alta da cidade, é equipada com uma caixa d'água de 8 mil litros e um tanque de 6 mil litros. "Além de armazenar, reutilizamos a água de diversas formas", diz. "A água da máquina de lavar roupa, por exemplo, é usada para lavar as áreas externas da casa."

 

Segundo a Companhia de Água e Esgoto da Paraíba (Cagepa), o Açude Epitácio Pessoa, conhecido como Boqueirão, de onde é feito o abastecimento para Campina Grande e outras 18 cidades da região, opera com cerca de 22% de capacidade. Foi estabelecido pelo governo que seria adotado rodízio em 25%.

 

Entre as capitais, uma das mais habituadas a enfrentar rodízio é São Luís. O abastecimento é de um dia com água e outro sem. Alguns pontos da cidade, porém, passam dias seguidos sem receber água.

 

A alternativa emergencial encontrada pelo Estado para amenizar o problema foi a abertura de poços. Desde o início do ano, a Companhia de Saneamento Ambiental do Maranhão (Caema) contratou a perfuração de 11 poços. "São obras provisórias, mas a melhor solução para regularizar rapidamente o abastecimento", diz o diretor-presidente da Caema, Davi Telles.

 

Rotina. No Recife, as irmãs Laurecí Maria Neves, de 58 anos, e Lindaci Maria Neves, de 62, não escapam da falta d'água. Elas moram no Alto do Capitão, morro da zona norte, onde há rodízio de um dia com água e outro sem, mas o corte pode ser maior. "A água vem após quatro dias, mas sem hora certa e muitas vezes vai embora depois de poucas horas", diz Laurecí.

 

Baldes, bacias e tonéis integram a mobília de suas casas há cerca de 15 anos. Banho de chuveiro, só eventualmente. Laurecí diz que há dez anos não toma um. Lindaci tomou um no ano passado, quando visitou parentes em Abreu e Lima. "Em casa, não dá", explica. "A água, quando chega, não tem força para subir." Seja do banho de bacia, com cuia, da lavagem da roupa ou da louça, a água é reutilizada e vai parar no vaso sanitário ou na limpeza do chão.

 

Aos paulistanos que enfrentam o risco da falta d'água, elas ensinam que "sempre é possível economizar mais" e que é preciso cultivar a solidariedade. "Quando a gente não tem para onde correr, algum amigo cede um pouco", diz Laurecí.

 

O diretor regional metropolitano da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa), Fernando Matos, afirma que o Recife não enfrenta crise igual à de São Paulo. "Os rodízios não ocorrem por falta de água", diz. Segundo ele, há produção, mas o problema está na rede de distribuição, que está em processo de substituição.