Com o aumento da inflação e a redução de vagas de emprego, ganhos obtidos nos últimos anos, como o acesso ao ensino superior e a serviços mais sofisticados, voltam a ficar mais distantes

 

Um dos méritos dos tempos de crescimento econômico e das políticas sociais do governo foi garantir que a chamada nova classe média pudesse olhar no longo prazo e planejar o futuro. Segundo especialistas em baixa renda, os 35 milhões de brasileiros que saíram da pobreza tiveram acesso não apenas ao iogurte e ao televisor de 42 polegadas. Finalmente puderam almejar o ensino superior, a casa própria em área com infraestrutura básica e assumir gastos fixos com serviços mais sofisticados - como a internet, que amplia a rede de amigos e as oportunidades de trabalho. Mas a recessão que ronda o País pode comprometer a escalada na pirâmide social. 

 

 

 

 

Dois indicadores divulgados na semana passada sinalizaram uma tendência nefasta para essa parcela. De um lado, o IPCA, que mede a inflação oficial do País, passou de 8% no acumulado em 12 meses. A taxa de desemprego da Pnad Contínua, que detalha o mercado de trabalho em 3,5 mil municípios, subiu para 7,4% no trimestre encerrado em fevereiro. Há um milhão a mais de desempregados. Ou seja, os números atestam a deterioração simultânea do emprego formal e do poder de compra. 

 

 

O estudante que virou chope. Souza foi demitido do setor da construção e vende chope para pagar o curso de engenharia

O estudante que virou chope. Souza foi demitido do setor da construção e vende chope para pagar o curso de engenharia

 

 

“Ninguém duvida que a fantástica ascensão da classe média vai dar uma brecada”, diz Ricardo Paes de Barros, professor do Insper e pesquisador dedicado a temas como desigualdade social, educação, pobreza e mercado de trabalho. “A discussão agora é se a crise será grave o suficiente para reverter seus ganhos.” Como esse segmento da população está espalhado pelo País e atua nos mais diversos setores da economia, Paes de Barros acredita que a “brecada” não é homogênea. Neste momento, tende a ser sentida por moradores de grandes centros urbanos. “A parcela urbana é mais conectada à economia de mercado e, por isso, mais sensível às suas variações”, diz.

 

O cenário, porém, é “preocupante”, na avaliação de Luciana Aguiar, diretora da Plano CDE, empresa especializada em baixa renda. “As despesas da casa, com aluguel e supermercado, consomem quase 40% da renda, sem incluir luz e água, que também aumentaram. O poder de compra caiu e, se perder o emprego formal, essa parte da população fica refém do curto prazo: volta a administrar a sobrevivência no dia a dia e esquece o futuro.” 

 

Segundo a economista Alessandra Ribeiro, da Tendência Consultoria, já é possível identificar arranhões na conquista mais preciosa - a carteira de trabalho assinada. Pela primeira vez desde a eclosão da crise internacional em 2008, as empresas fecham postos de trabalho. Em janeiro e fevereiro, o saldo (relação entre contratações e demissões) foi negativo, indicando extinção de vagas.

 

No detalhe. O maior problema está no detalhe: “Os setores que mais demitiram, construção e indústria, pagavam salários entre R$ 1 mil e R$ 1,5 mil, o que atinge em cheio a classe emergente.” Descontando oscilações naturais do período, 143 mil vagas foram extintas nesses setores. O estágio do estudante Thiago Souza, 28 anos, de Osasco, em São Paulo, foi uma delas. 

 

Em 2009, depois de perder o emprego como metalúrgico, Souza escolheu cursar engenharia civil: “Falavam em apagão de engenheiros e parecia ter futuro.” No segundo ano do curso, já estava no canteiro de obras. Passou por grandes empresas, como PDG. Em janeiro passado, ganhava R$ 1,5 mil como estagiário na francesa Setec, empresa especializada em projetos para grandes obras púbicas e acalentava a contratação. No entanto, com a paralisia no setor de obras, foi demitido. “Como não aparece nada na área, ajudo um amigo que tem uma franquia de chope”, diz. Ganha por mês R$ 1 mil - R$ 450 cobrem metade da mensalidade do último ano do curso. A outra parte é custeada por bolsa de estudo pública. Com o restante, ajuda a mãe, que também ganha cerca de R$ 1 mil.

 

Durante a crise dos anos 80, ficou famoso o engenheiro que, sem perspectiva de atuar na área, abriu uma lanchonete na Avenida Paulista, em São Paulo, e batizou o local de O Engenheiro que Virou Suco. Souza espera que, após tanto esforço, não se forme para ser o engenheiro que virou chope. 

 

Fiscal. No que se refere aos mais pobres, que ainda almejam chegar à classe C, a discussão é outra. Segundo o economista Paes de Barros, a parcela bem mais pobre está escondida no interior do País: “Não se conectou ao mercado e, assim, é menos sensível a ganhos e também a perdas da economia”, diz. “A propagação da crise entre eles vai depender do ajuste fiscal: se o governo organizar o gasto público e preservar os programas, a crise não se espalha.” 

 

Para se entender a força de uma política pública, basta olhar o que ocorre com as bolsas de estudo, fundamentais para que boa parte da classe C entre na universidade. Especialistas em contas públicas defendem que as bolsas eram concedidas indiscriminadamente, sem garantia de retorno para o aluno e o País. Era preciso mudar. Mas, pelas estimativas do Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior em São Paulo, a reorganização tem custos sociais: 400 mil jovens de baixa renda vão desistir da faculdade. 

 

Classe C não quer e também não pode elevar o consumo

 

Em pesquisa, 83% dos quase 1,5 mil entrevistados consideraram que o cenário econômico piorou nos primeiros meses deste ano

 

Levantamentos iniciais sinalizam que as famílias com menor poder aquisitivo já se deram conta dos perigos da crise para as suas finanças. Pesquisa realizada em fevereiro pela Boa Vista Serviços, empresa de informações de crédito, mostrou essa preocupação: 83% dos quase 1,5 mil entrevistados consideraram que o cenário econômico piorou nos primeiros meses deste ano. Essa piora foi mais sentida justamente nas classes C e D/E. Nesse segmento, a piora do cenário foi identificada por 85% dos consumidores ouvidos, ante 78% das classes A e B.

 

 

“O que vemos é que o consumidor dessa nova classe média está sem dinheiro e sem confiança para gastar - o que, no atual cenário, é até bom”, diz Fernando Consenza, diretor de sustentabilidade da Boa Vista. 

 

 

Pesquisa realizada em fevereiro pela Boa Vista Serviços mostrou essa preocupação: 83% dos quase 1,5 mil entrevistados consideram que o cenário econômico piorou nos primeiros meses deste ano.

Pesquisa realizada em fevereiro pela Boa Vista Serviços mostrou essa preocupação: 83% dos quase 1,5 mil entrevistados consideram que o cenário econômico piorou nos primeiros meses deste ano.

 

 

 

 

Contenção. Consenza lembra que esse segmento da população “salvou a pátria” após a crise internacional de 2008, indo às compras. Foi ela que manteve a economia girando no Brasil enquanto a economia dos países desenvolvidos naufragava. Mas as condições internas do País mudaram e qualquer exagero financeiro pode ter o efeito inverso. “Agora, o que vai salvar a pátria, por assim dizer, é este consumidor ser cauteloso nos gastos para manter o equilíbrio financeiro e não ficar inadimplente”, diz Consenza.

 

Rose Sandes entendeu o recado do momento. Moradora de Taboão da Serra, na região metropolitana de São Paulo, recebe R$ 1,5 mil trabalhando como assistente administrativa num escritório de paisagismo na capital. Na virada do ano, quitou as dívidas e, desde então, sua rotina é segurar os gastos. “Sempre vivi apertada, mas as coisas eram mais baratas”, diz. “Subiu tudo: luz, aluguel, ônibus, supermercado.” 

 

Rose tem concentrado esforços em conseguir a casa própria no CDHU, programa habitacional do Estado de São Paulo. Está inscrita e acompanha as reuniões. Abdicou da mesa de bar com amigos, do cinema, do passeio. A diversão é visitar parentes: “Para ir ao show de um Chico Buarque, por exemplo, só se eu atrasar umas duas prestações da Renner”, diz Rose.