A cabeleireira Amanda sofreu humilhação na delegacia de Santa Maria ao ser chamada, intencionalmente, pelo nome de batismo: "Pior experiência"

 

A cabeleireira Amanda Borges de Almeida, 29 anos, tem corpo de mulher marcado por delicadas tatuagens de flores e estrelas. Os longos cabelos ondulados, a voz doce e as roupas sensuais também compõem a imagem feminina que ela levou 10 anos para construir. Há dois meses, ela foi à 33ª Delegacia de Polícia (Santa Maria) prestar depoimento como testemunha de um inquérito. Sentada com discrição na sala de espera, Amanda foi tratada aos gritos como “senhor Welington”...

 

Constrangida diante das dezenas de olhares questionadores, a transexual pediu para ser chamada pelo nome social. “Você é homem e é como homem que eu vou te tratar”, respondeu, rispidamente, o policial civil.

 

Episódios de preconceito e discriminação fazem parte da rotina de travestis e transexuais, mas, em ambientes como delegacias, eles enfrentam ainda mais dificuldades de aceitação. Uma resolução do Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT, publicada no Diário Oficial da União no mês passado, recomenda que autoridades policiais passem a respeitar a orientação sexual e a identidade de gênero nas ocorrências. Cidadãos com identidade de gênero diferente da estampada na Carteira de Identidade comemoraram a medida, mas não se reduziu a polêmica em torno do assunto. Parlamentares evangélicos pressionam contra a implementação da iniciativa e criticam a adoção do texto nos espaços públicos do DF.

 

A resolução não tem força de lei, mas serve como orientação sobre a importância do respeito aos direitos de travestis e transexuais. Amanda aprovou a proposição e defende o uso do nome social em todos os serviços públicos. “A minha experiência na delegacia foi péssima. O agente gritou o meu nome de batismo com o único intuito de me constranger. Tenho amigas transexuais que sofreram humilhação em blitzes e em abordagens policiais. A resolução é importante para começar a mudar essa mentalidade”, comenta a cabeleireira. “Em hospitais e escolas, por exemplo, sempre me respeitaram como sou. A minha pior experiência com serviço público foi justamente em uma delegacia.”

 

Vitória Regis Dias, 31 anos, enfrentou o mesmo problema quando precisou registrar ocorrência. Depois de perder os documentos, ela foi até a 31ª DP (Planaltina) e sofreu humilhações por parte dos servidores que deveriam atendê-la com cortesia. “Dois agentes começaram a zombar de mim, chamando-me, bem alto, de Walisson, o meu nome de batismo. Eles riam, dava para ver que faziam de propósito. Eu disse que tinha um nome social, mas fui tratada como homem mesmo vestida de mulher dos pés à cabeça”, relembra.

 

Ela também teve uma experiência negativa na Câmara Legislativa. “Fui ao gabinete de uma deputada e, na recepção, a atendente questionou o meu documento e disse que não me deixaria subir. Aquela é a casa do povo, eles deveriam ser orientados sobre como proceder”, acrescenta a moradora de Planaltina.

 

Bom atendimento

O diretor-geral da Polícia Civil do DF, Eric Seba de Castro, afirma que a recomendação à corporação é de atendimento igual para todos os cidadãos que procuram uma delegacia. Ele entende, porém, que o avanço ocorrerá aos poucos. “Por mais que se recomende, alguns paradigmas precisam ser quebrados. Vejo isso como um processo, uma mudança de cultura, de realidade”, explica. Seba afirma que respeita a convicção de cada um, mas garante que a determinação dentro da Polícia Civil é de respeito. “O atendimento deve ser digno dentro de todas as delegacias.” 

 

Para o delegado, apesar disso, a polícia não pode ignorar o nome de batismo nas unidades policiais. “Não temos como deixar de pedir que a pessoa se identifique, até por questão legal, senão podemos deixar na rua alguém que está sendo procurado.” O diretor-geral acredita que a mudança total, para evitar qualquer tipo de constrangimento, deve ser pensada com bastante cautela. “Talvez o ideal, ao longo do tempo, seja até uma identificação biométrica que tenha todas as informações. Assim, a pessoa pode chegar à delegacia e não precisa entregar os documentos no nome de batismo”, sugere.

 

Diretor de Comunicação do Sindicato dos Policiais Civis do DF (Sinpol), Luciano Garrido explica que, como a resolução não tem força de lei, o sindicato não pode fazer muito. Ele afirma que se deve aguardar a regulamentação para padronizar o atendimento. “É preciso tratar as pessoas pelo nome, ainda mais quem se envolve em alguma ocorrência. Tem policial que até se constrange em chamar alguém por um nome do sexo oposto. Mas, apesar de tudo isso, o bom atendimento deve ser feito.”

 

 

Constrangimento na escola

 

"Por mais que se recomende, alguns paradigmas precisam ser quebrados. Vejo isso como um processo, uma mudança de cultura, de realidade. O atendimento deve ser digno dentro de todas as delegacias" 

 

Eric Seba de Castro, diretor-geral da Polícia Civil do DF

 

Nas escolas do Distrito Federal, o clima é mais acolhedor para transexuais e travestis, mas alguns estudantes ainda sofrem com o preconceito e a incompreensão. Mas Pedro (nome fictício), 17 anos, aluno do ensino médio do Centro de Ensino 417 de Santa Maria, pensa em abandonar os estudos para fugir da discriminação. Ele assumiu a identidade masculina há cerca de 5 meses e não quer mais ser chamado de Fernanda, o nome de batismo. Com cabelos curtos e roupas de menino, Pedro declarou guerra ao colégio para ser chamado pelo nome social. “A escola exigiu que a minha mãe fizesse uma autorização por escrito, mas o diretor sabe que a minha mãe é analfabeta”, conta o adolescente transexual.

 

Pedro não tem frequentado as aulas por medo do constrangimento. “Os colegas me chamam pelo meu nome social, aminha família também, mas, na escola, o diretor exige que todos me tratem como Fernanda. A psicóloga da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Humano e Social (Sedest) que acompanha o caso disse que esse era um direito meu, mas ninguém respeita”, reclama.

 

Em nota, a Secretaria de Educação informou que atende todos com o direito ao nome social. “Para a utilização, o requerente manifesta formalmente o desejo e, a partir daí, ele é reconhecido conforme solicitado”, informou a pasta. “No caso da Resolução nº 12, a secretaria orientou as equipes gestoras das escolas a instruir estudantes e servidores que porventura solicitarem o amparo da lei para que façam o registro formal da opção que desejarem constantes no documento, sem constrangimento”, acrescenta.

 

O diretor do Sindicato dos Professores, Cléber Ribeiro Soares, reconhece que ainda há preconceito no ambiente escolar. “A categoria, assim como boa parte da sociedade, ainda não está preparada para lidar com a diversidade. A nossa meta é conscientizar os professores sobre a importância de respeitar a diversidade sexual dos alunos e vice-versa. Quando há alguma situação de discriminação, a nossa orientação é para que o episódio seja usado didaticamente como alerta”, revela.

 

A cabeleireira Camila Becker, 28 anos, relembra com mágoa as dificuldades que enfrentou como estudante transexual. Aluna de uma escola particular do Cruzeiro, ela só era chamada de Carlos Eduardo por professores. “Na época, eu estava em processo de transformação e era muito importante para mim ser chamada pelo nome social. Nunca fui recriminada por colegas, mas foi muito difícil estudar sem o apoio e o amparo da escola”, conta.

 

O que diz a lei

 

A Resolução nº 12 recomenda que seja garantida a adoção de nome social àqueles cuja identificação civil não reflita adequadamente a identidade de gênero, além do direito ao uso do banheiro e de uniforme, de acordo com essa identidade. A medida também prevê a inclusão do campo “nome social” em formulários e outros sistemas de informação. Na Resolução nº 11, também publicada em 12 de março, recomenda-se a criação de campos “orientação sexual”, “identidade de gênero” e “nome social” nos boletins de ocorrência emitidos pelas autoridades policiais no Brasil.