A contínua devastação do cerrado brasileiro manteve 139 espécies que só existem na região na lista de animais sob risco de extinção, de acordo com a última avaliação feita pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, em 2014. Uma dela é o pirá-brasília, peixe que só existe em Brasília e é considerado um dos símbolos da capital. Descoberto na época da construção da cidade, o bicho está classificado como vulnerável, ou seja, seu perigo de extinção na natureza a médio prazo é alto (veja quadro). “Ele é considerado vulnerável por conta da sua amplitude de distribuição pequena, porque só ocorre aqui. E, além de pequeno, esse espaço está sendo constantemente destruído”, afirma Pedro de Podestá, pesquisador da espécie e biólogo da Universidade de Brasília (UnB).

De acordo com o especialista, o pirá-brasília só é encontrado hoje em unidades de conservação. Mais especificamente na reserva Biológica (Rebio) do Guará e na reserva Eecológica do IBGE. Pedro diz que, com o desmatamento, o ciclo de reprodução do Simpsonichthys boitonei — nome científico da espécie — foi interrompido, o que explica sua sobrevida apenas em áreas específicas. “O ambiente de reprodução do pirá-brasília são lagoas temporárias, que se formam em matas de galeria, típicas do cerrado. Com a ocupação humana, essas lagoas não se formam e eles não têm como se reproduzir.”

Para Júlio César Sampaio da Silva, coordenador do Programa Cerrado e Pantanal da WWF Brasil, os riscos que o pirá-brasília sofre só denotam a situação do cerrado como bioma mais ameaçado ao redor do mundo. “A região dele é que tem sofrido com maior velocidade os efeitos do desmatamento, com o avanço da fronteira agrícola e da infraestrutura montada para a construção de cidades.”

O pirá-brasília não é a única espécie de peixe exclusiva do cerrado que corre risco de extinção. “Aqui no DF existem outras espécies ainda mais arriscadas, como o pirá-santana, que não existe em nenhuma unidade de conversação para garantir sua existência. Ela também é exclusiva daqui, mas tem uma distribuição ainda mais restrita, na Bacia do Ribeirão Santana, além de um ambiente ainda mais destruído.” O pesquisador afirma que, atualmente, o maior problema está na identificação dos locais onde a reprodução dessas espécies ainda ocorre e a garantia de monitoramento delas. “Mas a melhor solução para evitar a extinção é recuperar as áreas devastadas e criar novas unidades de conservação.”

Em nota, o ICMBio afirma que “tem várias iniciativas de proteção às espécies e aos biomas brasileiros, além de sua atribuição institucional de gestão das Unidades de Conservação, extremamente importantes na manutenção e na preservação de populações de espécies ameaçadas”. O órgão cita o Plano de Ação Nacional para a Recuperação das Espécies Ameaçadas de Extinção (PAN), que implica ações que “abrangem a interferência em políticas públicas, o desenvolvimento de conhecimento, sensibilização de comunidades, controle da ação humana e manejo de espécies e paisagens, de modo a melhorar o estado de conservação das espécies-alvo”.

Apesar das atividades, Júlio César, da WWF, afirma que os esforços têm sido pontuais. Ele cita uma iniciativa anunciada em 2011 pelo governo federal, que monitoraria as regiões do cerrado brasileiro em tempo real. “Isso ficou em cima da mesa. A mensagem que tentamos passar é que a proteção da biodiversidade do cerrado é importante como ativo ambiental. Essa perda causa um grande impacto na economia.” Atualmente, cerca de 44% da área de cerrado no Brasil está desmatada e apenas 10% dela é protegida.

A classificação dos animais

Segundo o ICMBio, o Brasil adota a metodologia da IUCN (International Union for Conservation of Nature) para avaliar o estado de conservação da fauna brasileira, com critérios quantitativos e qualitativos que possibilitam a categorização das espécies de acordo com o seu risco de extinção. O método é reconhecido como o mais cientificamente rigoroso para avaliar o risco de extinção. Saiba como ocorre a classificação:

Extinto

Quando não há dúvidas de que o último representante da espécie morreu.

Extinto na natureza

Quando as espécies existem somente em cultivo, cativeiro ou em populações inseridas na natureza, em áreas completamente distintas da de sua ocorrência original.

Ameaçada

Distingue três níveis de ameaça:
» Criticamente em Perigo
quando há risco extremamente alto de extinção na natureza
em futuro imediato.

» Em Perigo:
quando não está criticamente
em perigo, mas corre risco
muito alto de extinção na
natureza em futuro próximo.

» Vulnerável
quando há risco alto de extinção na natureza em médio prazo.

O ciclo de vida

1 Antes da seca, os adultos da espécie depositam os ovos nos sedimentos de poças d’água existentes no cerrado. Esses ovos têm adaptações para se manterem vivos durante o período seco, em um estado conhecido como diapausa.

2Com a chegada das chuvas, as poças voltam a surgir, formando regiões alagadas perto dos rios. Em contato com a água, os ovos eclodem e o peixe se desenvolve, atingindo a maturidade em cerca de 2 meses.

3Ao fim da estação chuvosa, eles morrem, mas não sem antes depositarem novos ovos na terra, que irão eclodir quando chover novamente.

4Com o desmatamento decorrente do crescimento urbano e populacional do DF, as poças não aparecem e, mesmo naquelas que se formam, falta sombra para mantê-las cheias tempo suficiente para que o pirá-brasília se desenvolva. Por isso seu risco de extinção.

Memória

Polêmica distrital

O pirá-brasília não está nos holofotes apenas por seu risco de extinção. Em 1993, ele foi tema de discussões acaloradas na Câmara Legislativa do Distrito Federal. O motivo? O peixe era um animal hermafrodita. Conta a história que, naquele ano, tramitou o Projeto de Lei nº 00805/93, do deputado Wasny de Roure, que pretendia celebrar o bicho como “Animal símbolo da capital federal”.

Entre as justificativas estava o fato de ele ter sido encontrado pela primeira vez no córrego do Guará, em 1958, durante a construção de Brasília. A intenção, por melhor que fosse, barrou em uma característica do pirá-brasília que desagradou à bancada de oposição: o peixinho poderia desempenhar tanto o lado masculino quanto o feminino na hora de se reproduzir — algo que não satisfez os nobres deputados defensores da moral e dos bons costumes da família brasiliense.

Em meio ao conflito, o lobo-guará surgiu como um candidato de gêneros mais definidos, o que fez com que levasse o posto, mesmo não sendo um animal exclusivo do quadradinho. Há quem ainda consideram o pirá-brasília um símbolo, outros que adorem o lobo-guará. Mas é certo que, mesmo em 2015, ninguém se surpreenda que os deputados tenham gastado tanto tempo discutindo essa pauta naquela época.