Título: Massacre na véspera do Ramadã
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 01/08/2011, Mundo, p. 12

Tanques sírios invadem cidade ao norte de Damasco, disparam a esmo e executam pelo menos 100 civis. Sobrevivente conta ao Correio que a %u201Csituação é muito aterrorizante%u201D. Ocidente condena a matança

Fotos: Reprodução/YouTube/AFP

Moradores de Hama se protegem durante disparos

Dois homens seguram um corpo cuja cabeça ficou reduzida a uma massa disforme. O barulho frequente das explosões e a fumaça escura que toma conta do horizonte misturam-se aos gritos de desespero. Ao fundo, ouve-se a repetição do Takbir ¿ como é chamada a expressão "Allahu Akbar" ("Deus é grande, em árabe"). É véspera do Ramadã, o mês sagrado para o islã, e os cerca de 700 mil moradores de Hama (centro), 209km ao norte de Damasco, mergulham no horror. Às 5h de ontem (23h de sábado, em Brasília), os tanques de guerra enviados pelo presidente Bashar Al-Assad invadiram a cidade, após 29 dias de cerco. Saleh Al-Hamwi (nome fictício) estava em casa quando ao menos 80 blindados se aproximaram, vindos de todas as direções. "Nós corremos para a rua, com a intenção de fazer uma barreira humana e deter o avanço das tropas, mas eles começaram a disparar a esmo", afirmou o sobrevivente ao Correio, por telefone. "A situação é muito aterrorizante", assegurou Saleh, enquanto relatava escutar tiros. Até o fechamento desta edição, os moradores de Hama contavam ao menos 100 mortos.

Em um dos dias mais sangrentos desde o início da revolta contra Al-Assad, 136 pessoas morreram em todo o país ¿ cinco em Homs, três na província de Idleb, 19 em Deir Ezzor, seis em Hark, duas em Surán e uma em Bukamal, além das 100 em Hama. Ativistas de direitos humanos denunciam que a matança, condenada pela comunidade internacional, faz parte de uma estratégia de Damasco para encerrar o levante antes do início do Ramadã. Visivelmente abalado, Saleh contou que os tanques alvejaram casas e não pouparam nem sequer as crianças. "Algumas foram atingidas dentro de seus próprios lares", disse, entre lágrimas. "A maior parte dos disparos foi efetuada na cabeça e no peito. Os soldados iniciariam nas próximas horas uma nova operação. Temos que nos proteger."

Assim que percebeu a gravidade da situação, Saleh dirigiu-se ao Hospital Hourani, que já enfrenta uma escassez de sangue do tipo O negativo. "Vi muitos mortos", cita. Ele tentou levar feridos até lá, mas foi impedido. Os tanques lançavam sua artilharia na direção do prédio. Uma imagem não sai de sua mente. "Uma criança pequena, de uns cinco ou seis anos, foi morta dentro de sua casa, sem ter feito nada", lamenta Saleh, que acredita na queda de Al-Assad ainda durante o Ramadã.

Para o dissidente sírio Ausama Monajed, Al-Assad tentou usar todo o poder para interromper as demonstrações no país. O resultado pode ser o oposto do desejado pelo presidente. "Com o 4º Regimento do Exército e a Shabbiha (milícias alauitas leais ao regime) desgastados e com mais deserções no Exército, a operação em Hama vai incitar mais sírios a saírem às ruas e mais soldados a abandonarem seus postos", previu, por e-mail. O ativista de direitos humanos Radwan Ziadeh cobrou uma atitude enérgica da comunidade internacional. "É preciso parar essa operação militar e proteger os cidadãos. Os governos do Ocidente têm que discutir com a oposição."

Do lado errado O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, se disse "chocado" e prometeu intensificar a pressão sobre Al-Assad. "A Síria será um lugar melhor quando avançar para uma transição democrática", afirmou, por meio de uma nota. "Mais uma vez, o presidente Al-Assad mostrou que é completamente incapaz e que não deseja responder aos pedidos legítimos do povo sírio. Seu uso de tortura, corrupção e de terror o coloca do lado errado da história e de seu povo", criticou Obama.

O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, condenou "com firmeza" o uso da força contra a população e exortou o governo da Síria a "deter a violenta ofensiva de uma vez". O presidente do parlamento europeu, Jerzy Buzek, foi incisivo: "A matança deve cessar agora e o regime deve começar a transferir o poder". A França considerou os ataques "inaceitáveis" e pediu que o Conselho de Segurança da ONU "faça frente a suas responsabilidades". A Itália sugeriu a convocação de uma reunião de emergência do órgão.