Título: Milagres do SUS e a Emenda 29
Autor: Fernandes, Wanderley M. D.
Fonte: Correio Braziliense, 01/08/2011, Opinião, p. 11

Cirurgião, docente de medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS), membro do Grupo de Estudos da Saúde do Partido Verde

Em meio as recorrentes discussões sobre o precário financiamento da saúde pública, o governo agora pensa impor novo imposto para a aprovação da Emenda Constitucional nº 29, de setembro de 2000, que deveria ter sido implementada até 2004. A emenda viria regulamentar os percentuais de investimentos expressamente distribuídos entre as esferas federal, estaduais e municipais para o custeio do atendimento aos usuários do maior avanço democrático, ainda não devidamente reconhecido, que o país tem em termos de pacto federativo, articulação de parcerias, regionalizações estratégicas e consorcializações municipais. Trata-se de referência internacional em imunizações e tratamento de DST/AIDS do mundo, que é o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.

Quando do texto original na Constituinte de 1988, o seu financiamento estava dentro de 1/3 do Orçamento da Seguridade Social, que, à época, além da saúde, envolvia a previdência e a assistência sociais. Se assim se mantivesse, a saúde pública, hoje, em valores presentes, contaria entre R$ 112 bilhões e R$ 130 bilhões/ano, bem diferente dos R$ 68 bilhões-R$ 70 bilhões previstos no orçamento para 2011.

Essa derrocada motivou a criação, em outubro de 1996, da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), que seria, na totalidade da arrecadação, exclusivamente para o Fundo Nacional de Saúde (FNS). Porém, a partir de 1999, a CPMF passou a destinar parte importante dos seus recursos também à Previdência Social e a programas de erradicação da pobreza. Em 2008, a CPMF foi revogada, o que privou o financiamento da saúde pública de aproximadamente R$ 40 bilhões/ano.

O Brasil, atualmente, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), está entre os países que menos destinam recursos para a saúde em relação ao percentual do Produto Interno Bruto (PIB) nominal, o oitavo do planeta: ocupa a 169ª posição entre as 198 nações pesquisadas. Gastou cerca de R$ 2 por habitante/ano nos dias de 2010 para custear, desde o combate ao mosquito Aedes Aegypti e as campanhas de imunizações, até o custeio dos transplantes. Operou-se milagres.

Diante de todas as dificuldades de financiamento do setor público da saúde, os incentivos aos gastos privados de pessoas físicas e jurídicas têm sido generosos por parte do governo. A renúncia fiscal, via desconto no Imposto de Renda, e o não recebimento dos gastos privados por atendimentos nos serviços públicos à parcela dos 21% da população que paga planos de saúde somam perdas para mais de R$ 20 bilhões/ano. Trasnsferências de receitas dos tributos pagos por contribuintes aos prestadores contratados pelo SUS ultrapassam R$ 1,9 bilhão/ano.

Dados da Confederação Nacional de Saúde (CNS) indicam que dos 6 mil hospitais brasileiros, 4,6 mil são privados, Hospitais beneficentes, também imunes de tributos, respondem por 55,6% das internações pelo SUS. Atualmente, 95% dos procedimentos médicos especializados de alto custo são comprados ao setor privado. Na área dos transplantes, 90% são realizados em serviços conveniados.

Entretanto, o gasto público com a saúde, somando todos os níveis de governo, não passa de 3,4% do PIB, o que representa 48% do total gasto. A parcela de investimento federal é de apenas 1,7%, menos de 7% da arrecadação trilionária de impostos. Isso faz com que o setor privado complemente os 52% restantes, ou seja, 3,68 % do PIB, mesmo que sob incentivos fiscais, renúncia a cobranças e transferências de arrecadações públicas para pagamentos por assistência médica. De cada R$ 100 que os brasileiros despendem com saúde, R$ 62 são gastos privados e apenas R$ 38 são efetivamente destinados pelo setor público. Na Constituição brasileira consta que a assistência à saúde é universal, mas nada rege sobre ser equitativa e urge ser.

Ao todo, a parte a recuperar das perdas do financiamento para a saúde acumulam cerca de R$ 61,9 bilhões. Depois da redemocratização do país, em 1985, e da estabilização monetária de 1994, a aprovação da Emenda Constitucional 29, em 2011, sem criação de novo imposto, consolida o estado de direito social estabelecido em 1988, como prova da sensibilidade moral de um governo que merece o povo brasileiro.