Parte de um pacote contra a corrupção apresentado pela presidente Dilma Rousseff na semana passada, três dias após os protestos de 15 de março, a regulamentação da Lei Anticorrupção já provoca críticas de juristas. Um dos especialistas que se opõem ao decreto é o advogado Modesto Carvalhosa, de 82 anos, que lançou recentemente o livro "Considerações sobre a Lei Anticorrupção das Pessoas Jurídicas".

Na opinião de Carvalhosa, o decreto pode produzir um efeito contrário ao que se espera dele. Ao determinar que a autoridade máxima de cada órgão seja responsável por abrir os processos administrativos contra as empresas, o texto pode criar uma nova fonte de corrupção. Segundo Carvalhosa, empreiteiras poderiam pagar a políticos para não serem investigadas. O advogado defende que essa responsabilidade seja da Controladoria Geral da União (CGU), e não de ministros de Estado. Ele também critica a redução da multa aplicada às empresas consideradas culpadas e desaprova a criação de uma instância de reconsideração das punições.

Como o senhor viu a regulamentação da Lei Anticorrupção, assinada pela presidente Dilma Rousseff na semana passada?

Essa regulamentação é uma farsa. A Lei Anticorrupção é autoaplicativa, não precisava de regulamentação. Na realidade, a única coisa que precisava ser objeto de um regulamento era o artigo 7, que fala sobre parâmetros de avaliação de mecanismos e procedimentos que são levados em conta na aplicação das sanções às empresas corruptas. Além disso, um decreto do Executivo não pode modificar a lei que ele regulamenta. Isso tudo é para adiar a aplicação da lei. Essa regulamentação tem que ser anulada pelo Ministério Público.

Por que o senhor acha que o MP deveria pedir a anulação?

A regulamentação fala que a competência de instaurar processos administrativos contra as empresas é de ministros, e não da Controladoria Geral da União (CGU). Acredito que o processo administrativo tem que ser feito por um ente público de corregedoria, ligado ao Estado, e não ao governo. Como pode colocar um político para julgar empreiteiras? Um ministro, que foi indicado por um partido que recebeu dinheiro da corrupção na Petrobras por meio de empreiteiras, vai julgar essas empresas? Como é que pode isso? Esse é um princípio universal da administração pública: nenhuma pessoa política pode fazer processo administrativo. Para isso existe a CGU.

Tirar essa competência da CGU pode atrapalhar as apurações?

Isso pode se tornar uma fonte de corrupção brutal. Porque os ministros podem dizer para os executivos das empreiteiras: "Não, meu amigo, quero o meu também. Vocês já deram dinheiro para partidos, deputados, quero minha parte para absolver vocês."

O senhor vê outros problemas no texto de regulamentação?

Ele deforma a lei completamente, destrói a lei. Diz que só pode haver multa de até 5% do faturamento da empresa processada. Antes era 20%. Depois, cria uma instância de reconsideração, que é comandada pelo próprio ministro. Outra fonte de corrupção. Ademais, cria uma investigação preliminar sigilosa. Essa investigação pode decretar que a empreiteira não é culpada, não instaurar processo. Pode surgir decisão de arquivar a investigação, impedindo que o processo administrativo siga adiante.

Como deveria ser o processo administrativo contra empresas acusadas de corrupção, na sua opinião?

Se o governo tivesse algum tirocínio, faria processo bem forte contra as empreiteiras, teria condenado-as a pagamento de multas, e elas teriam acabado com seus problemas. Mas não. Demorou um ano para vir com regulamento que não vai julgar nada, que vai ter instância de recurso. E assim as empresas vão perdendo todos os créditos nos planos nacional e internacional e ficando sujeitas às sanções internacionais.

As empreiteiras investigadas na Operação Lava-Jato podem ser condenadas no exterior?

A Lei Anticorrupção é uma internalização dos tratados internacionais. Então, o Departamento de Justiça Americano, o Briber Act , do Reino Unido, o Banco Mundial vão declarar a inidoneidade dessas empresas, mesmo porque elas operaram em diversos países. Se elas fossem condenadas no Brasil, existe o princípio de que não pode haver duas condenações sobre o mesmo fato delituoso. Uma punição severa seria uma forma de ressuscitar essas empresas. Em vez disso, elas estão aí, com as contas ruins. Não têm crédito, ninguém contrata mais. Alguém pode dizer que essa regulamentação da lei vai salvar as empreiteiras. Mas para as empresas é o fim do mundo.

As alterações da Lei Anticorrupção podem interferir em punições que as empreiteiras podem sofrer ao longo da Lava-Jato?

Só nas punições administrativas (multa e impossibilidade de contratar com o governo). Mas não interferem em nada no processo criminal.

Que medidas o senhor recomendaria ao governo para combater a corrupção?

Para acabar com corrupção tem que quebrar a interlocução direta entre fornecedores e o governo. E isso deve ser feito através de um instrumento chamado Performance bond (seguro de desempenho). Uma seguradora garante qualidade, prazo e preço do projeto. Então, para não pagar um seguro monumental, ela toma conta da obra. Desde 1887, isso é utilizado nos Estados Unidos. Qualquer país civilizado no mundo tem Performance bond . E adivinha quem é o maior conhecedor desse processo no Brasil? A Petrobras. Eles têm vários contratos de performance bond quando interessa (à empresa).