Título: Uma afronta à ONU
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 02/08/2011, Mundo, p. 16

Tanques e tropas leais ao regime sírio voltam a bombardear Hama, horas após massacrarem 100 civis. Presidente Bashar Al-Assad ignora reunião de emergência do Conselho de Segurança e parabeniza seus soldados

Os moradores de Hama, ao norte de Damasco, ainda enterravam seus 100 mortos nos jardins das próprias casas e acabavam de celebrar o iftar (a refeição noturna que encerra o dia de jejum no Ramadã). A cerca de quatro horas da reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU e pouco mais de 30 horas depois do massacre promovido pelas forças do presidente sírio, Bashar Al-Assad, a cidade voltava a viver momentos de horror (leia o depoimento nesta página). "As pessoas estão nas ruas, à espera da morte. Há várias explosões em áreas diferentes, e a eletricidade foi cortada em alguns bairros", afirmou ao Correio, pelo Skype, o farmacêutico sírio Rana, 39 anos. Nem de longe os apelos da comunidade internacional incomodaram Al-Assad. No primeiro dia do mês sagrado para os muçulmanos, o presidente intensificou a repressão, parabenizou o Exército e deixou-se fotografar ao lado de soldados feridos, durante visita a um hospital de Damasco.

"Felicito cada soldado e o parabenizo pelo 66º aniversário das Forças Armadas árabes da Síria (...) que defendem seus direitos frente aos planos agressivos que atravessam nosso presente e nosso futuro", declarou. "Todos vocês representam o orgulho e a dignidade. (...) Estou absolutamente convencido de que seremos capazes de inviabilizar esse novo episódio de complô bem preparado, que tem por objetivo desagregar a Síria", emendou.

O Ministério das Relações Exteriores brasileiro condenou a matança e usou, de forma inédita, o termo "indignação". "O governo brasileiro recebeu com indignação a notícia da repressão a manifestantes em Hama, Síria. (...) Ao lamentar profundamente as mortes, o governo brasileiro reitera o repúdio ao uso da força contra manifestantes civis", afirma a nota. O texto manifesta preocupação com o não cumprimento de Al-Assad com os compromissos assumidos em relação ao direito de expressão e insta Damasco a prosseguir com o diálogo e a reforma política.

Hama é o símbolo da luta contra o regime desde a repressão de uma revolta da Irmandade Muçulmana, 29 anos atrás. Ahmad Tellawi (nome fictício) preferia deixá-las sepultadas para sempre. Mas as memórias daqueles dias sangrentos de fevereiro de 1982 voltaram com força desde domingo. Ele tinha 22 anos quando as tropas de Hafez Al-Assad, pai de Bashar, invadiram a cidade e executaram pelo menos 20 mil civis. "Eu me recordo dos prédios destruídos, dos mortos abandonados nas ruas, das pessoas escondendo-se atrás das portas e colocando tudo o que podiam ali para impedir a entrada dos soldados em suas casas", contou ao Correio, pela internet. "Eu me lembro das pessoas orando para que Deus as salvasse". E lança um alerta: "O pai de Al-Assad matou nossos pais. O filho de Al-Assad está matando nossos filhos. Ficaremos em silêncio até que os netos do presidente também matem nossos netos?".

Ahmad duvida da repetição do massacre. "Naquela ocasião, Hafez era apoiado por Moscou e não era possível transferir nossa voz para o mundo. Mesmo Homs, a 45km daqui, demorou vários dias para tomar conhecimento das mortes." Por meio do microblog Twitter, os sírios usam a internet para denunciar os ataques de Al-Assad, antes mesmo de eles repercutirem nas agências de notícias. Opositores na Síria usam as hashtags #RamadanMassacre e #Hama como ferramentas contra o governo. Nos ataques de ontem, nove civis teriam morrido ¿ seis em Hama, um em Deir Al-Zor (leste) e um em Albu Kamal, na fronteira com o Iraque.

Até o fechamento desta edição, o Conselho de Segurança não havia obtido qualquer avanço sobre a repressão no país. "Os europeus seguem discutindo uma resolução e nós apoiamos fortemente esta iniciativa (...), mas outros países não querem fazer o mesmo", declarou Susan Rice, embaixadora dos Estados Unidos na ONU, em referência a China, Rússia, Brasil, Índia e África do Sul.