O passado é incerto
Míriam Leitão
miriamleitao@oglobo.com.br
O passado voltou a ser incerto no Brasil. A expressão, que nasceu na esteira da limpeza dos armários no governo Fernando Henrique, é, de novo, atual. FH tirou esqueletos da época do regime militar. O relatório do TCU mostra que as trapalhadas fiscais deixaram o rastro da incerteza nas contas do governo. A dívida pública pode subir se forem contabilizados todos os novos passivos.
A frase é boa e conhecida. "No Brasil, até o passado é incerto." Alguns a atribuem ao ex-ministro Pedro Malan, eu a ouvi a primeira vez do ex-presidente do Banco Central Gustavo Loyola. Vários a repetiam. Ela se consolidou como uma frase antológica sobre o Brasil. Talvez tenha sido criação coletiva da equipe que enfrentou as várias etapas do longo processo de arrumação de contas que, por décadas, haviam sido mal contadas.
Ao abrir os armários, o governo FH encontrou esqueletos. Eram dívidas do Tesouro que não haviam tido registros contábeis e que ficaram no limbo pelos governos anteriores. Só para falar de um, cito o Fundo de Compensação de Variação Salarial. O FCVS estabelecia que, quando a prestação da casa própria excedesse o reajuste dos salários, a diferença iria para um saldo a ser quitado ao fim do empréstimo. Foi da época do ex-ministro Delfim Netto. Virou um monstro que o governo teve que assumir. Assim se fabricavam os esqueletos. Pôr tudo às claras custou o aumento do endividamento, mas criou as bases nas quais foi elaborada a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Agora, novos esqueletos apareceram. O "Valor" disse que a dívida pública terá que ser recalculada para que seja incluído o impacto dos empréstimos indevidos feitos pelos bancos públicos ao Tesouro no primeiro mandato da presidente Dilma. Houve manobras fiscais que não são ataques à Lei de Responsabilidade Fiscal. Usar os bancos públicos para pagar contas orçamentárias, como os benefícios sociais, e não quitá-los por longo tempo é empréstimo, e isso fere a lei. Esse é o ponto do TCU. Agora é refazer o caminho dos cálculos de déficits, superávits, dívidas, para recolher logo os esqueletos que se formaram.
O risco de deixar tudo assim é maior do que o de reabrir os armários para nova limpeza. Um país com passado incerto alimenta a inflação, cria novos passivos, perde a credibilidade nos índices, fica sem o grau de investimento. Como a Argentina. Nosso vizinho brigou com os números, a ponto de atacar o instituto responsável pelas contas nacionais. Quando alguém for arrumar esse passado terá que fechar o vizinho para balanço. Pobre Argentina. Mas não choremos por ela, temos o que fazer em casa.
No Brasil, o atentado foi feito no próprio Tesouro, com a anuência do ministro da Fazenda. Durante anos eles procuraram dar um jeitinho nas contas para elas ficarem mais bonitas. Fizeram maquiagens. Algumas são mais lesivas, outras são menos. As operações com os bancos públicos pertencem ao grupo das que são também ilegais.
Em um determinado item, o TCU avisa o seguinte: "Frise-se, por oportuno, que as análises realizadas pela equipe de auditoria não foram realizadas em relação a todas as situações existentes de repasses de recursos às instituições financeiras. Significa dizer que os achados listados neste relatório não são exaustivos". Soa ameaçador. Há mais?
Algumas dívidas com os bancos públicos, Caixa, Banco do Brasil, BNDES, foram quitadas com atraso deixando a instituição ficar com o custo do dinheiro sem remuneração na pátria dos juros altos. Outros créditos nem foram quitados. Independentemente do debate político que as manobras fiscais provocam, é preciso enfrentar, no nascedouro, os esqueletos. A incerteza sobre o passado é a pior companhia que se pode ter no caminho para um ajuste fiscal. A nova equipe econômica terá que enfrentar esses fantasmas se não quiser ficar consertando a parede da casa cuja fundação tem uma rachadura.
Em outras palavras, não bastará ao ministro Joaquim Levy ser transparente sobre o presente. Levy não poderá aprovar a prática que ele mesmo aboliu. Se não criticar o passado, ele o convalidará. Se Levy o criticar, estará em rota de colisão com o governo do qual faz parte. O passado incerto torna o presente instável.