Os brutos também matam

 

Relatório anual do instituto de segurança pública aponta novo aumento de homicídios

Vera Araújo

varaujo@oglobo.com.br

Violência. Enterro de Mylena da Silva Bessa, assassinada em Niterói pelo ex-marido: um crime ainda comum

 

A cada dia, pelo menos uma mulher, em média, é assassinada. O que os noticiários mostraram na semana passada, quando quatro mulheres foram mortas por maridos ou ex-companheiros em quatro dias, indica um crescimento da violência contra o sexo feminino, que se confirma em estatísticas. O Instituto de Segurança Pública (ISP) divulga hoje o Dossiê Mulher 2014, e a conclusão, a partir da análise dos registros de ocorrência feitos nas delegacias do estado, é que houve um aumento de 18% no número de homicídios dolosos. Foram 420 mulheres assassinadas no ano passado, contra 356 em 2013. De 2012 para 2013, o crescimento foi de 20,7%.

O técnico em eletrônica Adilson de Oliveira Bessa, pai da comerciante Mylena da Silva Bessa, de 27 anos, morta em Niterói no último dia 18, tem uma opinião sobre a causa do aumento da violência contra a mulher: a impunidade. Dois dias antes de a filha entrar nas estatísticas, ele comentava com um amigo, numa padaria no subúrbio do Rio, o assassinato de uma ex-vizinha, a dançarina Cícera Alves de Sena, mais conhecida como Amanda Bueno, ex-integrante do grupo Gaiola das Popozudas. O noivo dela, Milton Severiano Vieira, foi indiciado como autor do crime.

- Eu falava com meu amigo sobre o caso da dançarina, que eu conhecia de vista. Não imaginava que veria uma situação idêntica com minha filha. Na semana passada, vimos uma sequência de assassinatos de mulheres. As pessoas não estão valorizando a vida. Acho que nem a Lei Maria da Penha serviu para inibir esse tipo de crime. É a confiança do criminoso na impunidade - diz o pai de Mylena, referindo-se ao ex-genro, o advogado Gutemberg Augusto Martins Gonçalves, acusado de ter baleado a jovem ao vê-la com um amigo.

pai não sabia do sofrimento da filha

Adilson lamenta que, só depois do assassinato da filha, tomou conhecimento de que o ex-marido de Mylena já havia tentado matá-la duas vezes.

- Minha filha escondeu isso de mim. Somente agora minha irmã me contou que ele tentou atropelar Mylena quando ela ainda estava grávida do meu neto. Se eu soubesse disso, teria incentivado minha menina a fazer um registro na delegacia. Ela ficou com medo de represália. Acho que os pais devem ficar de olho nas filhas até mesmo quando elas não vivem mais sob o mesmo teto. Vou lutar para que Gutemberg não seja solto, ele precisa pagar pelo que fez - diz o técnico em eletrônica, que planeja fazer uma campanha nas redes sociais.

A socióloga Andréia Soares Pinto, uma das organizadoras do Dossiê Mulher, discorda de Adilson: ela não acha que criminosos agem pela certeza da impunidade. Para ela, o estudo comprova que o homem ainda mantém a cultura de que a mulher é propriedade dele.

- A ideia de que as mulheres pertencem aos homens não muda, porém, em compensação, elas estão denunciando mais, porque estão se informando melhor sobre seus direitos - afirma a pesquisadora, lembrando que a violência contra a mulher pode acontecer de cinco formas: sexual, física, moral, psicológica e patrimonial.

O levantamento de 2014 aponta que a maioria dos homicídios foi praticada em áreas pobres da Região Metropolitana. Os locais onde os crimes ocorreram com maior frequência são Nova Iguaçu, Nilópolis e Mesquita (45 vítimas, no total), Duque de Caxias (36) e São Gonçalo (29 mulheres). Houve também assassinatos de mulheres na Zona Sul. Somente no Leblon, ocorreram três casos no ano passado.

Outro dado que chama a atenção no Dossiê Mulher 2014 é a relação entre a vítima e o acusado de homicídio doloso em vários casos: dos 420 registrados, 41 (9,8%) tiveram maridos ou ex-companheiros como autores. Pesquisadores alertam que o levantamento toma como base a investigação inicial, na qual não está indicada, na maioria das vezes, a autoria do crime. Um campo de informação recém-criado nos boletins de ocorrência questiona se o delito pode ser enquadrado como situação de violência doméstica ou familiar (Lei Maria da Penha). Em 2014, 12,4% dos registros tiveram resposta positiva para essa pergunta.

número de estupros ainda é alto

Apesar de uma redução de 3% (de 4.725 casos, em 2014, para 4.871, em 2013), os estupros também mereceram destaque no estudo. A cada dia, 13 mulheres, em média, foram violentadas no estado. Nesse cenário, salta aos olhos o dado de que 64,2% das vítimas tinham até 17 anos (a faixa entre 12 e 16 anos apresentou o maior percentual, 33,3%). Em 42% dos crimes, as vítimas de estupro e seus agressores tinham algum tipo de relação - eram maridos, ex-companheiros, pais, padrastos, vizinhos, colegas de trabalho ou amigos.

O Dossiê Mulher também descreve o crime de feminicídio - o assassinato praticado apenas pelo fato de a vítima ser mulher, conforme a Lei 13.104/2015. Porém, esse tipo de crime não é definido pela polícia nos boletins de ocorrência, apenas a Justiça pode fazê-lo.

- O feminicídio é uma qualificadora do homicídio. É necessário uma investigação profunda que demonstre ao juiz, durante o processo, se houve, ou não, o feminicídio. Por causa disso, esse crime não pode estar nos registros policiais - explica a pesquisadora do ISP Andréia Soares.

Uma cobrança constante que vem sendo feita por algumas organizações de movimentos sociais é de que o Dossiê Mulher levante os casos de violência de gênero. Andréia informa que está sendo cogitada a possibilidade de o próximo levantamento incluir essa abordagem.

- Hoje, vemos contextos diferentes, famílias diferentes. Então, esses grupos também querem seu espaço no estudo. Temos de pensar numa forma de rever essa questão. É um homem que se transforma em mulher e se vê como mulher. Ele vive com um homem e sofre a violência como mulher. O sentimento dele é de uma mulher. É uma violência doméstica? Claro que sim. Haverá um momento em que teremos de nos dar conta disso - disse a socióloga.

O Dossiê Mulher, que está em sua décima versão, já foi finalista do Prêmio Boas Práticas na Aplicação, Divulgação e Implementação da Lei Maria da Penha, da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres da Presidência da República.