Chuva de veneno e de impunidade

Correio braziliense, n. 19972, 06/05/2015. Brasil, p. 5

Warner Bento Filho

Um dos maiores casos de intoxicação por agrotóxico já registrados no país completou dois anos no último domingo sem que as mais de 100 vítimas — que ainda sofrem as consequências — tenham recebido o tratamento adequado e sem que qualquer pessoa, empresa ou instituição, tenha sido responsabilizada. O caso ocorreu em 3 de maio de 2013, na área rural de Rio Verde, em Goiás, a 440km de Brasília.

Naquela manhã de sexta-feira, o piloto David Colto levantou voo em um avião agrícola da empresa Aerotex. Carregava, segundo a empresa, o inseticida engeo pleno, fabricado pela Syngenta. Seu destino: uma lavoura de 10 hectares de milho — arrendada de um assentado — vizinha à Escola Municipal São José do Pontal, no assentamento rural Pontal do Buriti. Perto das 9h30, os alunos, de 9 a 16 anos, espalhados pelo pátio e pela área de lazer da escola, usavam pratos de plástico para comer a merenda daquele dia: arroz com galinha. David Colto começou a pulverização. Com o avião, ia e vinha distribuindo inseticida.

Professores e estudantes, em determinado momento, notaram a aproximação ruidosa da aeronave. Em seguida, tomaram um banho de veneno, que atingiu a pele, os cabelos, as roupas e a comida das crianças. O prédio, os brinquedos no parquinho, os veículos, árvores, pátio, tudo foi banhado de agrotóxico. O avião passou pelo menos mais uma vez sobre a escola, despejando uma segunda chuva tóxica.

O resultado da nuvem de veneno que caiu sobre a escola foi sentido poucos minutos depois. Alunos, professores e funcionários manifestavam sintomas de intoxicação aguda, com náuseas, vômitos, tonturas, dores de cabeça, coceiras, falta de ar e formigamento. Improvisadamente, foram levados ao posto de saúde mais próximo. Lá não havia médicos toxicologistas ou outros profissionais para fazer o atendimento. As vítimas foram observadas, algumas receberam soro fisiológico e duas horas depois todas foram mandadas de volta para casa, mesmo ainda sob os efeitos da intoxicação.

Daquela data até hoje, elas lutam em vão para receber o tratamento adequado. Parte das pessoas continua sentindo os sintomas. Uma professora desenvolveu câncer de garganta. Há estudantes com problemas hormonais, hepáticos e pulmonares, mas nunca foram feitos estudos clínicos, laboratoriais ou de imagem para mapear com exatidão o grau de intoxicação e as consequências em cada um dos atingidos.

Fiança
Logo após o acontecido, o piloto David Colto; o dono da empresa, Ruy Alberto Texter; e o responsável técnico pela pulverização, Leandro Farina, foram presos por ordem do delegado Danilo Fabiano Carvalho Oliveira, mas libertados depois de pagarem fiança.

Um inquérito foi aberto pela Polícia Civil e remetido à Justiça, mas ninguém acabou responsabilizado. Não houve a reparação de nenhum dano. Tampouco alguma indenização. O Ministério Público exigiu da prefeitura uma série de providências em relação ao tratamento dos intoxicados. O secretário de Comunicação da prefeitura, Danilo de Castro Moraes, disse que “está tudo controlado” e que o município está fazendo “tudo o que está ao seu alcance”. No entanto, as vítimas, seus advogados, promotores e pesquisadores que acompanham o caso são unânimes em dizer que os intoxicados não recebem o tratamento necessário. A Secretaria de Meio Ambiente multou a Aerotex em
R$ 150 mil, por crime ambiental, mas a quantia nunca foi paga.


Morosidade tóxica
Dois anos depois da intoxicação, ninguém foi punido e nenhuma responsabilidade foi apurada. Veja o que (não) aconteceu com os diversos atores envolvidos

Prefeitura de Rio Verde
Os ministérios públicos estadual e federal de Rio Verde fizeram uma série de recomendações à prefeitura. Entre eles, que fosse viabilizada a “realização de todos os exames necessários ao diagnóstico e ao tratamento adequados das vítimas” e a contratação imediata das especialidades médicas e “dos demais profissionais de saúde não disponíveis na rede local do SUS”. De acordo com o Ministério Público Federal, porém, as recomendações não foram cumpridas. Os procuradores recorreram à Justiça, mas ainda não há decisão. A prefeitura não se manifestou.

Anvisa
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) abriu sindicância à época e notificou a Aerotex por crime contra a saúde pública. A empresa entrou com recurso administrativo e ainda não há conclusão para o caso.

Judiciário
Processos com pedidos de tratamento médico e indenizações tramitam na Justiça, mas até hoje não há nenhuma decisão definitiva. Pelo menos um dos processos teve recurso encaminhado ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região. O caso, que corre sob sigilo, foi distribuído ao desembargador João Batista Moreira há mais de um ano, em 5 de março de 2014, e está pronto para ser votado pela 5ª Turma, da qual o desembargador faz parte. Trata do fornecimento de medicamentos e atendimento médico às vítimas e, por essa razão, está separado entre os processos que têm urgência no gabinete do magistrado. Mesmo assim, não há ainda previsão para ser julgado, devido ao acúmulo de processos.

Ministério Público
O Ministério Público Federal entrou com ações na Justiça para garantir o atendimento às vítimas. “Espero que, demonstrando que dois anos depois do ocorrido, algumas vítimas ainda apresentam sinais de efeitos da intoxicação, seja possível uma decisão favorável”, diz o procurador Lincoln Meneguim. O MPF também pediu a instauração de inquérito pela Polícia Federal. As investigações, porém, ainda não foram concluídas.

Empresa
A Aerotex recebeu termo de ajuste de conduta do Ministério Público, responsabilizando-a pelos custos de diagnóstico técnico-sanitário-ambiental. Também deveria fazer a descontaminação da escola e o acompanhamento do tratamento dos atingidos, arcando com os custos de exames e atendimentos que não estivessem disponíveis na rede pública. De acordo com o advogado das vítimas, Cleuton de Freitas, a empresa não cumpre as exigências. Ainda assim, a Aerotex continua operando normalmente na região, sem sofrer qualquer restrição. Ao contrário, conquistou, em julho de 2014, o “selo de certificação aeroagrícola sustentável”, concedido pela Andef, a associação das empresas fabricantes de agrotóxicos. Por meio de nota, a empresa disse que "sempre honrou o compromisso de prestar assistência necessária às pessoas atingidas."