Uma rotina de luta, perigo e morte

Correio braziliense, n. 18991, 25/05/2015. Cidades, p. 19

Adriana Bernardes

Flávia Maia

Maria da Glória das Graças tem poucas coisas na vida. Não sabe o que é ter um almoço em família há mais de cinco anos. Também não tem mais marido — após três décadas de união, ele saiu de casa, em dezembro do ano passado. Uma catarata lhe rouba a visão dia após dia. O diagnóstico de síndrome do pânico chegou recentemente para explicar os calafrios, o tremor nas pernas e a ansiedade. Mas, acima de todos esses problemas, Glória tem um amor incondicional pelo filho mais novo, Tiago, 28 anos, dependente químico desde os 14.

Quando ela atendeu o Correio, na última quarta-feira, estava escondida com o filho Tiago em uma chácara. Ela não quis se encontrar pessoalmente com a reportagem, com medo de ser descoberta pelos traficantes. Os criminosos esfaquearam o jovem há cerca de um mês — ele ficou nove dias internado. O motivo foi uma dívida de drogas de R$ 50 que ela mesma pagou com juros entregando R$ 70. Mas os traficantes decidiram que não era suficiente. E queriam outros R$ 70. Antes que ela conseguisse o dinheiro, eles atacaram Tiago.

Essa é apenas uma das histórias vividas pela família desde a descoberta do vício do rapaz. Foram muitas as madrugadas em que ela e o ex-marido percorreram bocas de fumo em busca do filho. “São lugares muito perigosos. Lá, vale tudo. Por um tênis, por R$ 10, eles matam. A gente que está ali só para buscar um filho pode sair morta”, relata. Agora, a angústia é maior. Sem o companheiro, ela não tem coragem para procurar o rapaz. Fica em casa, “orando para pedir socorro a Deus” para que nada de mal aconteça a ele.

Ameaças de traficantes se tornaram rotineiras. Algumas foram veladas e outras, bastante explícitas. “Já disseram que, se eu não pagasse a dívida, matariam não só meu filho, como toda a minha família”, diz. “É um problema triste. Porque eles fazem o que fazem e não acontece nada. A polícia prende e a Justiça solta”, lamenta. Tanta dedicação para tentar recuperar o rapaz custou a união da família.

Assim que conseguiram a independência, os dois filhos mais velhos de Glória — um de 35 e outro de 30 anos — saíram de casa. Também evitam visitá-la porque, sempre que todos se encontram, há desentendimentos. “Eles não concordam com as coisas que o Tiago faz. Aí, sempre que posso, eu vou visitá-lo. Mas é difícil, porque não posso deixá-lo sozinho em casa. De botijão de gás a carne da geladeira, ele pega tudo para trocar por droga. Essa catarata mesmo, eu não posso operar. Se eu ficar internada, quem vai cuidar dele?”, indaga.

Sobre o atendimento no Centro de Atenção Psicossocial — Álcool e Drogas (Caps-AD), Glória é pessimista. “A gente vai à consulta, eles conversam, passam medicamentos e liberam. Mas eles saem dali e misturam a medicação com outras drogas. Na maioria das vezes, ele não quer ir à consulta. Quando estava quebrando tudo dentro de casa, chamava os bombeiros e uns diziam que não era problema deles. Eu ligava para a polícia e eles perguntavam se o Tiago tinha matado alguém. Tentei levá-lo ao Hospital São Vicente de Paula e diziam que lá não era lugar para tratar drogado.”

Crime

Há dois anos, a luta de uma mãe para afastar a filha adolescente do mundo das drogas custou-lhe a vida. Maria da Paz Nogueira de Souza, 37 anos, foi morta por traficantes dentro de casa, no Condomínio Del Lago, no Itapoã. Antes do crime, ela foi até uma boca de fumo procurar a jovem. Ela não estava no local e Maria da Paz agrediu a namorada de um dos traficantes. Quando entrava em casa mais tarde, foi atingida na cabeça por um tiro.

João (nome fictício), ex-marido de Maria da Paz, assumiu a criação dos três filhos. Ele garante que a filha não consumia entorpecentes, mas estava namorando um jovem traficante. No dia em que a mãe foi procura-lá na boca de fumo, a jovem estava na casa de uma amiga. “Era para ela ter ido para a minha casa na sexta. Ela não chegou e não voltou para a mãe dela. Ficou três dias na casa dessa amiga sem dar notícia”, explica.


“As bocas de fumo são lugares muito perigosos. Lá, vale tudo. Por um tênis, por R$ 10, eles matam. A gente que está ali só para buscar um filho pode sair morta”
Maria da Glória das Graças, mãe de Tiago, 28 anos, viciado em drogas desde os 14


Desafio é ampliar leitos para usuários

No Distrito Federal, existem 15 centros de atendimento psicossocial (Caps). O diretor de Saúde Mental, da Secretaria de Saúde, Ricardo Lins, reconhece que o serviço precisa ser ampliado para aumentar a oferta. Também é preciso qualificar a gestão do trabalho em rede, com envolvimento de outras pastas, como educação, desenvolvimento humano e social, além da Secretaria de JustiçaSocial. “É um problema para ser enfrentado no âmbito da saúde da família, da atenção básica e, ainda, da internação nos hospitais. A Portaria 185, por exemplo, fixa os casos de internação nos hospitais da rede. Se a equipe não está capacitada, ela não recusa o paciente, mas dá alta precoce”, explica. “É um trabalho amplo e intersetorial que surtirá efeito a médio e longo prazos”, diz. Segundo Lins, o DF tem três Caps com enfermaria para internação de adulto, três para crianças e adolescentes, além de 40 leitos de desintoxicação cadastrados nos hospitais da rede, como as unidades de SobradinhoTaguatinga e Hospital Regional da Asa Norte. Mas lembra que a proposta dos Caps não é de internação. É um tratamento livre. E muitas vezes, os familiares enxergam somente na internação a solução para os problemas. Segundo Ricardo Lins, a taxa de recuperação ou redução de danos é de 50% dos casos atendidos.

Avanços

O tratamento e a recuperação de dependentes químicos no Distrito Federal enfrenta inúmeros desafios a serem vencidos por todos os envolvidos: o usuário, a família e os profissionais de saúde. Segundo a coordenadora do Programa de Estudos e Atenção às Dependências Químicas da Universidade de Brasília, Maria Fátima Olivier Sudbrack, olhar para o dependente como uma pessoa doente e não um deliquente já foi um avanço. Mas é preciso vencer outras barreiras. “Essa pessoa não tem um vírus a ser erradicado. Não tem um lugar no cérebro para operar e, assim, obter a cura. Está doente de quê? De falta de vontade? De sem-vergonhice?”, provoca Maria Fátima, repetindo questionamentos ouvidos de familiares e da sociedade.

Para a pesquisadora, um dos grandes desafios do momento é capacitar os profissionais de saúde para que eles enxerguem o dependente químico como um sujeito único, que necessita de abordagens especiais. “É preciso descobrir que tipo de ajuda mais urgente a pessoa precisa. E a porta de entrada para que eles aceitem o tratamento é a família. Por isso, o tratamento dos familiares talvez seja ainda mais importante”, defende Maria Fátima. A pesquisadora afirma ainda que a internação não é o único caminho. E que o usuário necessita de opções. “O serviço de tratamento de dependentes químicos tem que ser muito flexível, acolhedor e competente para criar vínculo com essa pessoa”, explica.

No site da Secretaria de Saúde (www.saude.df.gov.br), há uma lista com telefones e endereços de todas as unidades de atendimento aos dependentes químicos de álcool e outras drogas. A família pode buscar ajuda mesmo sem a presença da pessoa que vai tentar o tratamento. Lá, receberá orientação sobre o que fazer para conseguir envolver o parente.


15
Total de centros de atendimento psicossocial no DF