Conta ainda não fecha, dizem economistas

Alexa Salomão

 

Para os economistas que acompanham as contas públicas, o contingenciamento do Orçamento anunciado ontem não surpreendeu. Ficou dentro do esperado. As medidas deixaram outra certeza: de que o governo terá mesmo dificuldades para cumprir a meta deste ano de superávit primário (a economia para o pagamento da dívida pública). O governo se comprometeu a fazer um superávit primário de 1,2 ponto porcentual do Produto Interno Bruto (PIB). Segundo o especialista em contas públicas Raul Velloso, ficou claro que a meta está mais distante porque a equipe do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, não conseguiu cortar tudo o que precisava e queria. "Ou em algum momento do ano o Levy vai se desgastar anunciando outro contingenciamento ou teremos novos aumentos de carga tributária para fechar a conta", diz ele.

O contingenciamento foi de quase R$ 70 bilhões, mas precisava ser o dobro. Segundo Velloso, como as despesas subiram muito em 2014, o parâmetro de corte adotado, ao que tudo indica, foi o PIB de 2013. "Cortaram algo como 0,1 ponto porcentual em relação ao PIB de 2013 - o que não é suficiente: seria necessário fazer um corte de 0,7 ponto porcentual", diz Velloso.

Contingenciamentos costumam se concentrar nos chamados gastos discricionários - gastos de custeio e de investimento que o governo tem autonomia para executar de acordo com a previsão de receitas. O corte foi considerado "brutal" nos investimentos. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) dá uma boa medida disso: perdeu cerca de R$ 26 bilhões. Somente o Minha Casa Minha Vida teve um corte de R$ 6 bilhões. A Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) demonstrou preocupação com o tipo de corte. Em nota, reconheceu a necessidade do ajuste, mas manifestou que a concentração de cortes no investimento pode levar a novas demissões.

 

O menor mal

 

Nessa perspectiva, a qualidade do ajuste não é mesmo muito boa, segundo avalia o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica durante o primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo Lisboa, cortes nos investimentos não ajudam a produzir um ajuste sustentável a longo prazo porque são provisórios: "Como fazer no ano que vem, se não vai ter mais investimentos relevantes para cortar?"

Mas para Lisboa, dos males o menor: "Pior do que um ajuste de má qualidade, porém, é não fazer o ajuste e deixar que o País entre numa crise aguda", diz Lisboa. "Sem o ajuste, o impacto sobre a produção e o emprego seria ainda pior, os juros subiriam ainda mais e o Brasil perderia o investment grade (termo em inglês para grau de investimento, nota conferida pelas agências de classificação de risco que garante que o País é um bom pagador e pode receber investidores mais qualificados)."

Há dois outros componentes importantes que, na visão dos economistas, pesam contra o sucesso do governo para cumprir a meta. O primeiro é a queda na receita, que está sendo acima do esperado. O segundo componente é político. O Congresso Nacional não está aprovando medidas com o conteúdo e na velocidade que o ajuste fiscal exige. Supondo que tudo possa ocorrer como o planejado - que a receita ao menos ficasse estagnada e fosse igual a de 2014 e que os deputados e senadores aprovassem as medidas pedidas pelo Executivo -, na melhor das hipóteses, o governo teria R$ 33 bilhões, apenas metade da meta prevista.

 

Governo cancela despesas que já sabia que não iria ter de pagar  

 

O governo maquiou o corte de gastos com subsídios ao setor elétrico ao cancelar despesas que já sabia, desde o ano passado, que não teria de pagar. A economia de R$ 2,94 bilhões nos repasses ao fundo setorial Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), anunciada pelo ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, não foi feita com "cortes na carne", mas sim às custas do consumidor.

O corte atingiu a rubrica dos chamados "restos a pagar", ou seja, as despesas feitas no ano passado cujo pagamento atrasou e ficou para este ano.

O gasto programado na Lei Orçamentária Anual (LOA), segundo o ministro Nelson Barbosa, era de R$ 4,19 bilhões, dos quais R$ 1,25 bilhão foi mantido. Nessa operação, o governo conseguiu reduzir suas despesas obrigatórias em R$ 2,94 bilhões.

Pedaladas. O que o ministro não explicou é que o valor de R$ 1,25 bilhão já foi pago em mais uma das conhecidas pedaladas fiscais. Em 30 de dezembro do ano passado, o governo decidiu pagar uma parte do que devia, mas programou a despesa para o dia 2 de janeiro deste ano.

O restante do gasto já foi completamente repassado para as tarifas de energia pagas pelo consumidor.

Desde março, a conta de luz de todos os brasileiros recolhe recursos para bancar essa despesa. Esses atrasos foram um dos motivos que explicam o tarifaço de quase 50% desde o início do ano - os restos a pagar significaram 3% desse total. Ou seja, o governo não tem mais despesa com a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) neste ano.

A informação de que essa conta seria paga pelo consumidor já era conhecida e pública desde o ano passado.

Em dezembro, o diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica, Romeu Rufino, confirmou que os atrasos nos pagamentos do governo para o setor elétrico atingiram quase R$ 3 bilhões e seriam pagos por meio da conta de luz.

Programas sociais. Em janeiro, o governo cancelou oficialmente o aporte de R$ 9 bilhões que faria ao setor elétrico neste ano. Sem essa ajuda do Tesouro Nacional, todos os programas sociais da área de energia deixaram de ser pagos pelo governo e, atualmente, são bancados por todos os brasileiros. A CDE é um fundo setorial do governo, mas é gerido pela Eletrobrás.

 

Destino de MP provoca divergência entre áreas econômica e política

 

As áreas política e econômica do governo federal entraram em divergência em relação ao destino da Medida Provisória 664, que tornou mais difícil o pagamento de benefícios previdenciários - pensões por morte e auxílio-doença.

Ontem, ao anunciar o decreto de contingenciamento orçamentário, a equipe econômica sinalizou que conta com a aprovação da MP. O ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, deixou claro que espera a aprovação das medidas provisórias no Senado.

Por outro lado, integrantes da cúpula do governo trabalham para colocar em prática, na próxima semana, uma manobra regimental que pode acarretar na perda de validade da Medida Provisória 664.

Caso a proposta não seja votada no Congresso Nacional antes do próximo dia 1º de junho, ela "caduca", perdendo seus efeitos. Segundo relatos ouvidos pelo Estado, a avaliação dentro do governo é de que o texto original foi bastante alterado na discussão realizada na Câmara dos Deputados, tornando a economia menor do que a esperada pela equipe econômica.

O governo esperava obter inicialmente uma receita de cerca de R$ 2 bilhões. Após os parlamentares afrouxarem as novas exigências, acabou-se reduzindo essa economia a menos da metade, segundo cálculos do consultor de Orçamento da Câmara, Leonardo Rolim.

Além disso, quando passou pela Câmara, os deputados incluíram na medida provisória uma emenda que criou uma alternativa ao fator previdenciário, algo que, de acordo com contas do próprio governo, deve gerar um gasto de R$ 40 bilhões na próxima década.

Diante de um custo-benefício pouco favorável, a MP 664 deixou de ser prioridade. A perda de validade também eliminaria o desgaste da presidente Dilma Rousseff de ter que vetar o trecho que trata do fator previdenciário, defendido pela base aliada e pela cúpula do PT.

Embora a estratégia já esteja armada, o discurso oficial dos governistas deverá ser o de que a 664 será votada como veio da Câmara, ou seja, com o fator previdenciário. A previsão de gastos com o seguro-desemprego e o abono salarial foi reduzida em R$ 5 bilhões, alterados pela MP 665, já aprovada na Câmara.