Oportunidade desperdiçada

 

Com crise, país deixa de aproveitar benefício de ter maioria da população em idade produtiva

Antônio Gois

As políticas macroeconômicas do país estão contribuindo para o fim precoce do bônus demográfico brasileiro. O alerta é de José Eustáquio Diniz Alves, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, um dos demógrafos que mais estudaram o fenômeno no Brasil. O bônus demográfico é caracterizado pelo período em que, por causa da redução no número de filhos por mulher, a estrutura populacional fica favorável ao crescimento econômico. Isto acontece porque há proporcionalmente menos crianças na população, e o percentual de idosos ainda não é alto.

O estudo de Alves mostra que, em 1970, para cada brasileiro economicamente ativo, havia dois fora do mercado. O último censo do IBGE, de 2010, mostra que essa proporção praticamente se igualou: para cada adulto economicamente ativo, havia outra pessoa fora do mercado. É como se a renda do trabalho, que antes era dividida por três, passasse a ser dividida por dois. Como as projeções populacionais indicam que o percentual de idosos crescerá aceleradamente, esta divisão voltará a ser menos vantajosa. O bônus é temporário.

Para que essa janela de oportunidade seja aproveitada, é preciso que a economia faça a sua parte gerando empregos. Segundo Alves, o bônus ainda poderia ser "colhido" pelas políticas públicas por mais cinco ou 15 anos, mas há sinais recentes preocupantes de que estamos deixando precocemente de aproveitá-lo.

O autor analisa, em seu estudo, principalmente o comportamento da População Economicamente Ativa (PEA) - ou seja, o grupo de pessoas empregadas ou procurando emprego -, e da população efetivamente ocupada. Analisando a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE, Alves argumenta que a proporção da PEA e dos ocupados em relação à população com idade para trabalhar caiu rapidamente entre 2011 e 2013. Isso significa que uma parcela maior de brasileiros, mesmo em idade ativa, deixou de trabalhar ou até mesmo de procurar emprego.

Ele observou o mesmo fenômeno na Pesquisa Mensal de Emprego e destacou também a queda no ritmo de geração de empregos formais.

- As tendências observadas entre 1970 e 2010 poderiam ser estendidas facilmente até 2020 e, com esforço, até 2030. Todavia, parece que as políticas macroeconômicas do país estão contribuindo para o fim precoce do bônus demográfico brasileiro - afirma o demógrafo.

A crise afeta jovens como Rayane Freitas de Lima, de 21 anos, que há quatro meses procura estágio e emprego. Em busca de uma boa oportunidade na área de Recursos Humanos, deixou em novembro do ano passado a empresa de consultoria e auditoria onde trabalhava. Apesar de estar prestes a se formar em Gestão de RH, a jovem agora não consegue se encaixar no mercado.

- Já tentei em lojas, empresas e consultorias de RH. Nem dentro da minha área nem fora. Como não tenho experiência, fica mais difícil me aceitarem para uma vaga - lamenta Lima.

Para Alves, os baixos níveis de poupança e de investimento não contribuem para a geração de empregos. Ele se mostra pessimista também com outros fatores, como a crise na Petrobras e a desorganização da cadeia produtiva dos combustíveis fósseis, além das crises hídrica e energética.

OCUPAÇÃO DE MULHERES AINDA PODE CRESCER

Outros demógrafos e economistas ouvidos pelo GLOBO são menos pessimistas em relação à capacidade de a economia se recuperar após um ajuste. Mas todos concordam que o Brasil não soube aproveitar adequadamente a janela de oportunidade aberta gradativamente desde a década de 1970, e já em caminhos de inversão.

Para Simone Wajnam, professora da pós-graduação em demografia do Cedeplar (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG), há espaço para o crescimento da população economicamente ativa, especialmente por causa das mulheres. Um estudo feito por ela e outros pesquisadores projetou que o aumento da escolaridade feminina contribuirá para que mais mulheres ocupem postos de trabalho.

Ela argumenta que parte da explicação para a diminuição recente da população economicamente ativa está no fato de muitos trabalhadores de baixa escolaridade, especialmente mulheres, terem deixado de procurar emprego. Este fenômeno, no entanto, não deve ser analisado apenas por um viés negativo. Em muitos casos, podem ser mulheres que tiveram filhos e que, graças ao aumento da renda ou de programas como o Bolsa Família, hoje têm melhores condições de evitar trabalhos precários. Especialistas também veem o fenômeno entre jovens. A renda maior das famílias permitiu que muitos estudassem mais e adiassem a entrada no mercado de trabalho.

- O decréscimo recente da participação feminina no mercado de trabalho é preocupante, mas não assumo que seja uma tendência de longo prazo. Baseado em tendências internacionais, temos várias razões para acreditar que a participação das mulheres voltará a crescer. Estamos numa conjuntura em que ainda temos mulheres adultas com baixa escolaridade. Mas, à medida que a própria transição vai se completando, esses grupos de baixíssima escolaridade vão deixar de existir, e haverá maior proporção de trabalhadoras de maior escolaridade, que apresentam taxas maiores de participação - explica Simone.

Naércio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper e professor da USP, também destaca que ainda há espaço para crescimento da população economicamente ativa. Ele diz que isso pode acontecer também pelos jovens, outro grupo em que os menos escolarizados deixaram de procurar emprego recentemente, muitos vindo a fazer parte da geração dos que nem estudam nem trabalham. Com a piora das condições do mercado de trabalho, porém, Menezes diz que a tendência é esses jovens voltarem a procurar emprego, para ajudar na complementação da renda das famílias.

Cássio Turra, presidente da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, destaca também que, mesmo que o cenário econômico seja negativo, o bônus não deixa de ser uma vantagem tanto para o crescimento econômico quanto da renda per capita.

- O bônus é uma questão de estrutura populacional. Ele não deixará de ser um fator positivo para o crescimento econômico até meados dos anos 2020. O crescimento econômico projetado poderia ser ainda menor nos próximos anos sem esse dividendo. Em outras palavras, qual seria esse crescimento se a população em idade ativa já estivesse decrescendo no cenário macroeconômico ou político atual? - indaga Turra.

O demógrafo Eduardo Rios Neto, também do Cedeplar/UFMG, destaca outro aspecto do bônus que não se encerrará a curto prazo: o número de crianças continuará em queda, o que facilitará o aumento do investimento per capita na infância. Com uma nova geração de melhor escolaridade, a produtividade do trabalhador no futuro tende a aumentar. Ele alerta, no entanto, que isso não basta:

- A melhoria da qualificação do trabalhador é condição necessária, mas não suficiente, para aumentar a produtividade.

Apesar de algumas divergências, o ponto consensual entre todos os especialistas ouvidos pelo GLOBO é que será preciso que a economia faça a sua parte para que a população em idade ativa encontre empregos de qualidade.

- Na maioria das vezes, a população foi vilã no debate sobre população e desenvolvimento. Neste momento da história brasileira, contudo, a crise é do modelo de desenvolvimento que está emperrando a abertura da janela de oportunidade demográfica. Se prevalecer o cenário mais pessimista, poderemos estar assistindo, com pouca chance de erro, a uma crise de longo prazo no mercado de trabalho. Além do retrocesso das conquistas sociais dos últimos 20 anos, seria o fim definitivo e precoce da colheita do bônus demográfico no Brasil - diz Alves.