Combate ao trabalho escravo

 

Os instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil e a ordem constitucional são enfáticos na proibição absoluta

Em 13 de março, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, entidades denunciaram a suspensão da chamada “lista suja” do trabalho escravo, que impede a concessão de crédito ou subsídio público e isenção fiscal a empresas e indivíduos que utilizem mão de obra escrava. Solicitaram também a visita ao Brasil da relatora especial da ONU para formas contemporâneas de escravidão, a fim de avaliar o impacto da suspensão.

O então cadastro de empregadores incluía 609 nomes de pessoas físicas e jurídicas flagradas na prática de submeter trabalhadores a condições análogas à de escravidão. Desse universo, o estado do Pará conta com 27% dos empregadores, seguido por Minas Gerais (11%), Mato Grosso (9%) e Goiás ( 8%). A pecuária constitui a atividade econômica desenvolvida pela maioria dos empregadores (40%), seguida da produção florestal (25%), agricultura (16%) e indústria da construção (7%).

A inclusão do nome do infrator no cadastro ocorre após decisão administrativa final relativa a auto de infração lavrado em decorrência de ação fiscal que identifique trabalhadores submetidos a trabalho escravo, conforme disciplinado por portaria do Ministério do Trabalho e Emprego. Decisão liminar no STF, em ação proposta pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, em dezembro de 2014, determinou a suspensão da portaria, sob o fundamento de que lhe faltaria base legal.

Os instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil e a ordem constitucional são enfáticos na proibição absoluta. O direito a não ser submetido a trabalho escravo demanda obrigações jurídicas voltadas ao dever estatal de prevenir, investigar, processar, punir e reparar a grave violação.

Em 5 de junho de 2014, foi promulgada a emenda constitucional nº 81, que estabelece a expropriação de propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde haja a exploração de trabalho escravo — a propriedade expropriada será destinada à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízos de outas sanções.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima existir mais de 12,3 milhões de pessoas submetidas a trabalho forçado no mundo, sendo que 1,3 milhão concentram-se na América Latina. No Brasil, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a cada ano, mais de 25 mil trabalhadores são escravizados, incluindo crianças e adolescentes. Das 27 unidades federativas do país, em apenas cinco a CPT não localizou trabalhadores mantidos como escravos nos últimos anos. Em 2003, o Brasil sofreu condenação internacional pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no caso José Pereira — vítima de tentativa de assassinato, quando buscava fugir de regime de trabalho escravo a que estava submetido em uma fazenda no Pará. Houve o pagamento de indenização à vítima e o compromisso do Estado de adotar medidas para o combate. No mesmo ano, era lançado o 1º Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, contemplando medidas de prevenção e repressão, por meio de ações articuladas e integradas nos planos federal e estaduais, a envolver diversas instituições.

No sentido de assegurar parâmetros protetivos mínimos em matéria de direitos, em 1995, a OIT destacou quatro princípios fundamentais: a abolição do trabalho forçado, a erradicação do trabalho infantil, a eliminação da discriminação no emprego e a liberdade de associação e proteção do direito à negociação coletiva. Em 1998, foi adotada a Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho, que conclama os estados a promover a aplicação universal destes quatro princípios. Para a OIT, o trabalho decente é aquele que respeita os direitos fundamentais dos trabalhadores, dentre eles o direito à integridade física e mental.

É nesse contexto que a imposição de sanções econômicas a empregadores que explorem trabalho escravo simboliza um extraordinário avanço, impedindo que mais de 600 empresas e pessoas continuem explorando trabalhadores como escravos, mediante recursos públicos. O direito de não ser submetido a trabalho escravo demanda a urgente adoção pelo Estado de políticas públicas eficazes voltadas à prevenção, ao combate e à erradicação, à luz dos parâmetros protetivos internacionais e constitucionais. Não há como conciliar a prática impune da escravidão com o Estado Democrático de Direito.

Flávia Piovesan é professora de Direito da PUC/SP e procuradora do Estado de São Paulo