Valor econômico, v. 15, n. 3743, 25/04/2015. Internacional, p. A11

 

Gasto social será dilema na Argentina pós-Kirchner

 

Por Marli Olmos | Buenos Aires

 

Martín Barzilai/ValorPosto de atendimento itinerante da Anses, a previdência social argentina, em La Matanza, oferece serviços e informações sobre programas sociais argentinos

Todo mês, Daniela Pascuali recebe do governo argentino dois tipos de ajuda financeira: 2.600 pesos para frequentar as aulas do ensino médio e mais 1.500 para manter três filhas - cada uma tem direito a 500. A soma desses benefícios, equivalente a US$ 465, garante o sustento das quatro e embala os sonhos de Daniela de terminar os estudos e conseguir um emprego digno. Por enquanto, essa argentina de 31 anos não pretende trabalhar. Se entrar no mercado formal, ela perde os sus benefícios.

Milhões de argentinos que dependem da mão do Estado para sobreviver fazem as contas do tempo que falta para a eleição presidencial. No fim de seu segundo mandato, Cristina Kirchner, a mais generosa com programas sociais entre os presidentes que passaram pela Casa Rosada nas últimas décadas, não pode concorrer à reeleição. Os que se candidataram ao cargo evitam tocar no assunto.

O modelo de ajuda social é uma das mais complicadas heranças que a era kirchenerista deixará para o próximo presidente, que será eleito daqui a seis meses. O caixa do governo federal sustenta 60 diferentes programas sociais. Nas províncias, que também elegem governadores neste ano, há outros tantos. Buenos Aires, a maior delas, tem 52.

Os 157,2 bilhões de pesos (cerca de US$ 18,3 bilhões) que a União reservou para esses programas de assistência social neste ano absorvem 13% do orçamento nacional e 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Isso se sobrepóem a gastos normais, como os de Previdência, educação e saúde. E a lista de benefícios se espalha entre ministérios. A programas sociais, a pasta do Trabalho destina mais de 60% do orçamento e a do Desenvolvimento Social, 93,7%.

Os dados não são oficiais. Foram garimpados por Marcos Hilding Ohlsson, um pesquisador especializado em programas sociais. Ele integra a equipe da Libertad & Progreso, uma associação independente que reúne economistas em torno da discussão das políticas públicas.

No ano passado, o governo federal distribuiu 18,2 milhões de benefícios num país com 40,1 milhões de habitantes. A falta de cruzamento de dados dificulta informações sobre número de beneficiados, já que muitos estão inscritos em mais de um programa. "Há uma clara falta de articulação", diz Ohlsson, para quem esse tipo de problema incentiva o clientelismo e mistura num mesmo universo pessoas de fato necessitadas e que fazem bom uso dos programas com aquelas manipuladas por políticos e que recebem dinheiro público em troca da presença em comícios.

É bastante comum Daniela ouvir comentários que a criticam por ganhar dinheiro "fácil" enquanto muita gente precisa trabalhar longas jornadas para receber esse mesma quantia de dinheiro.

A essas pessoas ela costuma responder que os programas sociais lhe entregaram a chance de estudar. Ela vive hoje uma realidade com a qual não imaginava nos tempos em que sobrevivia com o que ganhava nas faxinas em casas de família. "Eu sempre quis estudar, mas não conseguia", diz Daniela.

O programa no qual Daniela está inscrita oferece dinheiro a mulheres carentes com no mínimo três filhos. Com 15, 11 e sete anos de idade, suas filhas também têm que estudar e passar por controle médico frequente para ter direito ao programa que as atende. Há quem diga que os planos sociais estimulam a gravidez na classe baixa. Mas, para Ohlsson, é mais provável que os filhos venham muito mais pela falta de um controle de natalidade.

 

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Laura Rodriguez também tem três filhos e se agarra ao desejo de abandonar as faxinas das quais dependia para viver até ser aceita num programa social. Além da frequência às aulas do ensino médio, para ter direito ao benefício mensal de 2.600 pesos (US$ 295), ela precisa comprovar participação numa equipe de trabalho, formada por mulheres, que faz manutenção de escolas e praças. Ali ela ajuda na jardinagem e pintura de paredes. Mas o que mais a entusiasma são as aulas de auxiliar de enfermagem, que ela conseguiu incluir na agenda. Enfermeira passou a ser a profissão de seus sonhos.

Laura faz as contas do que vai receber este mês: são 2.600 pesos do programa de que participa no grupo de mulheres, mais 500 a que cada um dos filhos tem direito. Abril também é o mês de os meninos receberem ajuda para material escolar (700 pesos cada). Ela conta também com o chamado Plano Vida, que oferece um crédito de 200 pesos para compras em supermercados. E uma vizinha acaba de informá-la que vão depositar mais 154 pesos para ajudar na compra de gás. A lista é comprida, mas o aluguel da casa onde mora consome mais da metade dos recursos.

Nem todos sabem a origem ou o nome dos programas sociais. O mais popular é o chamado Asignación Universal por Hijo, semelhante ao Bolsa-Família no Brasil. Mães carentes recebem ajuda financeira para cada filho inscrito até ele completar 18 anos. Para o estudante na faixa dos 18 a 24 existe o Progresar, lançado no início do ano passado.

Na Argentina, o equivalente ao Minha Casa Minha Vida é o Procrear, por meio do qual a família compra casa nova ou faz reforma. Existem planos curiosos, como um exclusivo para mães com sete filhos ou mais. Ou enigmáticos, como o que atende a um crescente grupo de ex-combatentes nas Malvinas. "É louvável dar suporte a esses soldados. No entanto, é estranho ver que essa guerra foi há mais de 30 anos, mas o número de beneficiados aumentou em 200 somente em 2013", destaca Ohlsson.

O apoio assistencialista do Estado não aparece apenas nos programas sociais. O dinheiro público também percorre os bairros carentes em caravanas de assistência médica organizadas por associações vinculadas aos governos federal e provinciais. La Matanza foi uma das cidades contempladas este mês.

Com cerca de 1,8 milhão de habitantes e área de 325 quilômetros quadrados, La Matanza é o maior dos municípios que circundam a capital argentina. É lá que Daniela e Laura moram.

Impossível não notar os dois enormes caminhões que estavam estacionados nos últimos dias na Villa Madero, uma distrito de casas simples de alvenaria e grande parte das ruas asfaltada que toma boa parte de La Matanza.

Os dois veículos pertencem à Acumar, uma associação que surgiu com o objetivo de ajudar na despoluição de um rio local, mas agora também organiza consultórios itinerantes. Em um dos caminhões, a população é atendida em consultas médicas e exames. No outro, funciona um atendimento veterinário. Na maca, sob uma barraca montada à frente do veículo, gatos e cachorros de estimação revezavam-se para receber vacina ou serem castrados.

Perto dos caminhões foi montada uma tenda da Anses (Associação Nacional de Seguro Social), o sistema de previdência social argentino. A Anses é dona de um dos maiores orçamentos públicos - terá o equivalente a US$ 61 bilhões este ano, dos quais US$ 8,14 bilhões serão usados em 18 diferentes programas sociais. Trata-se do organismo federal com o maior número de planos sociais do país.

 

Martín Barzilai/ValorDaniela Pascuali, que vive em La Matanza, recebe ajuda de programas sociais para estudar e sustentar as três filhas

Havia um burburinho no escritório que os funcionários da Anses improvisaram na esquina da Villa Madero. Muita gente queria informações sobre o Progresar. A grande novidade é que há poucos dias foi ampliado o limite da renda familiar. Ou seja, poderão inscrever-se jovens que pertençam a famílias com renda total de até 15 mil pesos, que equivalem a US$ 1,7 mil. Isso é mais de quatro vezes o limite anterior.

Foi a própria presidente da República quem anunciou a novidade na televisão há pouco tempo. É um hábito frequente de Cristina usar a cadeia nacional para anunciar mudanças nos programas sociais. As notícias são sempre boas para quem participa. Algumas vezes, os reajustes nos valores surpreendem a população.

E, se de um lado os pesquisadores se deparam com dados obscuros sobre beneficiados, de outro sobra transparência na divulgação dos programas. Cristina envolve-se fortemente com os benefícios que seu governo oferece. No início do ano, fez questão de entregar as chaves a cada família beneficiada pelo Procrear e, de novo, usou cadeia nacional para transmitir a solenidade.

Há hoje na Argentina uma ampla discussão sobre a eficácia dos programas sociais como ferramenta para reduzir a pobreza. O Observatório Social da UCA (Universidade Católica Argentina), uma referência no assunto no país, sustenta que, embora esses benefícios tenham ajudado a diminuir os níveis de indigência, não colaboraram para a diminuição da pobreza, que atinge 27,5% da população, segundo a pesquisa mais recente da UCA, divulgada no ano passado.

A medição da pobreza transformou-se numa espécie de tabu na Argentina. O governo decidiu suspender a divulgação da estatística oficial no ano passado, o que gerou polêmica na opinião pública. Os ministros mais próximos de Cristina reagiram. Uma das declarações de Axel Kicillof, da Economia, chamou a atenção: "Medir a pobreza todos os dias, um pobre a mais, um pobre a menos, não é metodologicamente muito sério. Existem muitos parâmetros para medir as condições de pobreza".

Para os estudiosos, nem mesmo os períodos de crescimento econômico se apoiaram nos programas sociais. No livro "A Armadilha Populista: Riscos de uma Política de Curto Prazo", Enrique Szewach, professor de política econômica da Universidade de Buenos Aires, destaca que alguns governos de países em desenvolvimento têm o hábito de reforçar os programas sociais quando a economia vai bem porque aproveitam o reforço no caixa. Mas isso é um equívoco, segundo ele, porque as demandas costumam aumentar, depois, com a chegada dos períodos recessivos. "A Argentina não cresceu graças à exacerbação do populismo, mas apesar dele", destaca o autor na obra escrita em 2011.

É pouco provável que o sucessor de Cristina elimine os programas sociais. Para o analista político Sérgio Berensztein, os planos mais fortes como o Asignación por Hijo, que prevê ajuda financeira por filho, deverão permanecer. Ohlsson sugere um enxugamento do sistema e a possibilidade de manter pelo menos parte dos benefícios àqueles que conseguirem emprego formal.

Sem perder de vista as necessidades da população carente, o desafio do próximo presidente da Argentina será encontrar formas de aliviar o peso que os gastos sociais representam no país, que está com reservas muito baixas, afastado do financiamento internacional, com taxa inflacionária anual acima dos 30% e déficit fiscal em torno dos 7% do PIB.

Para preservar os programas sociais, o corte nos subsídios nas tarifas é um caminho apontado pela maioria dos analistas. Atualmente, os subsídios ao transporte e às contas de energia elétrica, por exemplo, não fazem distinção de classe. Atingem praticamente toda a população de Buenos Aires e entorno, onde vivem mais de 40% dos habitantes da Argentina. "Se os subsídios se destinarem apenas aos mais pobres, já teremos uma boa economia", diz Berensztein.

"Sabemos que há coisas erradas, gente que recebe para ir em comícios. Mas aqui no bairro tem muita gente honesta, que evoluiu graças aos planos e que usa essa oportunidade para um futuro melhor", diz José Navarro, comerciante e líder religioso em La Matanza. É bem provável que Daniela ou Laura desconheçam o emaranhado no qual a agenda social da Argentina se transformou e tampouco saibam os detalhes de como o gasto social impacta na economia do país. Afinal, esse não é um problema delas, mas do próximo presidente.