Luta contra o analfabetismo
Correio braziliense, n. 18983, 17/05/2015. Cidades, p. 25
Manoela Alcântara
Na cidade mais conectada do país e com o maior grau de escolaridade, quase 900 mil pessoas não sabem ler ou não chegaram ao 5º ano do ensino fundamental. Quem não aprendeu a escrever o próprio nome e é reconhecido nos documentos pela digital se tornou invisível em Brasília, território livre do analfabetismo, segundo o Ministério da Educação, com base em referências mundiais. Eles enfrentam dificuldades para encarar as atividades diárias mais básicas, como pegar um ônibus, ir ao supermercado ou fazer uma lista de compras. Não participam do Facebook nem do WhatsApp. Não postam no Twitter ou no Instagram. Perderam o tempo da era digital.
No total, 68.166 moradores do DF com 15 anos ou mais são analfabetos, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou 3,5% da população da época em que a análise ocorreu. No entanto, 28,8% não concluíram o ensino fundamental, o que representa 803 mil pessoas com conhecimentos superficiais da língua portuguesa ou de matemática. Às vezes, o conhecimento se limita à escrita do nome. Francisco Soares, 36 anos, terminou a primeira fase da educação básica (antiga 4ª série) quando era criança. As dificuldades eram muitas. Mas, mesmo diante da fome e da necessidade de sustentar parte da família antes dos 10, ele insistiu.
A mãe morreu aos 5. Com o avô doente e uma irmã para ajudar a criar, ele frequentou a escola, mas não passou disso. Aos 35, lia poucas palavras. A vergonha de explicar isso para as pessoas era demonstrada a partir de histórias inventadas para disfarçar o constrangimento. “Chegava à parada de ônibus e dizia: “Esqueci os óculos, você pode me dizer que ônibus é esse?” Sempre inventava algo. Era tudo mentira, vergonha”, reconheceu.
O carioca há 11 anos em Brasília trabalha como auxiliar de serviços gerais no Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT). Dentro do órgão, uma iniciativa começou a mudar a vida de Francisco. A partir da atuação da promotora Márcia Pereira da Rocha, da Promotoria de Justiça de Defesa da Educação (Proeduc), ele começou, há oito meses, um curso criado para dar oportunidade a esses cidadãos (leia Duas perguntas para). O projeto Vivendo e Aprendendo beneficiou 70 terceirizados analfabetos ou semianalfabetos, sendo que 33 deles se formam na terça-feira. “Agora, penso no futuro. Antes, eu até usava WhatsApp, mas só mandava mensagem de voz. Hoje, escrevo para os meus amigos, sem vergonha. Quero me inscrever na Educação de Jovens e Adultos (EJA), me formar no ensino médio e fazer faculdade”, empolga-se Francisco.
Diferentemente do auxiliar de serviços gerais, Ana Lúcia Maria de Jesus, 45 anos, tomou coragem para estudar há dois meses. Ela nasceu em Império Azul, interior de Minas Gerais. Não conheceu os pais, e os padrastos batiam nela quando falava em escola. “Eu tinha vontade, mas eles queriam que eu trabalhasse e cuidasse dos meus irmãos. Cresci lavando roupa, cuidando dos meninos”, lembra. Ana Lúcia não tem smartphone. O pequeno celular é só para receber ligação dos três filhos. A tecnologia é uma realidade distante para a auxiliar de cozinha.
O sonho dela é trocar a digital impressa na Carteira de Identidade por uma assinatura. “Já perdi ônibus e peguei uns errados. Reconheço as coisas pela embalagem, no mercado. Quando quero ler a Bíblia, peço aos amigos ou aos meus filhos. Mas não quero mais me identificar com o polegar. Analfabeta é uma pessoa sem ninguém, sem nome”, disse. E é preciso força de vontade. “Depois de um dia de trabalho, a gente quer ficar com os filhos e os netos, mas não vou desistir.” Ana Lúcia participa de um projeto do Centro de Voluntariado do DF, com 10 núcleos na capital federal. Moradora da Asa Norte, ela assiste às aulas perto de casa.
Erradicação
Universalizar a educação é também mudar uma realidade social que desfavoreceu indivíduos ao longo do tempo. Hoje, o critério usado para as pesquisas é da autodeclaração e, quando se fala em analfabetismo, os dados consideram pessoas com mais de 15 anos que não sabem ler ou escrever. “Se o aluno está matriculado na rede, muitas vezes, ele deixa de ser analfabeto nas estatísticas, mas temos estudantes de 25 anos na EJA que não sabem escrever. É desesperador em pleno século 21”, alertou a promotora Márcia.
A autoestima de quem não frequentou a escola na idade certa, na maioria das vezes, é baixa. Para a representante da Proeduc, a situação só muda se o modelo de educar essas pessoas também for alterado. “O DF pode melhorar a fiscalização dos locais onde houve a adesão do DF Alfabetizado. O governo federal tem uma dívida com essa parte da população e pode exigir contrapartidas da iniciativa privada para realizar programas de alfabetização. O combate à evasão também é uma torneira que precisa se fechada”, afirma.
O analfabetismo está tão ligado à questão da renda, que, em Brasília, enquanto os moradores do Sudoeste e do Cruzeiro são todos alfabetizados, 4,48% dos residentes no Paranoá não sabem ler ou escrever. Os dados são da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad) de 2013, da Companhia de Planejamento do DF (Codeplan). Se for considerada a população feminina acima de 60 anos não alfabetizada, chega a 48,4% na Fercal, entre as não negras. No Varjão, 50,7% das negras e idosas são analfabetas. Entre os homens na mesma faixa etária e negros, 33,8% são analfabetos.
Há, ainda, outro grupo pouco citado, aqueles que não concluíram o ensino fundamental. Eles têm mais de 15 anos e representam 28,82% dos habitantes do DF. “Fiquei assustada com os dados. Se temos o analfabetismo como um dado superado, se estamos indo bem, precisamos considerar essa defasagem idade/série e ampliar a conclusão do ensino fundamental, em especial voltado para a população com 25 anos ou mais, que já deveria ter concluído um curso superior”, analisou a gerente de Estudos e Análises Transversais da Codeplan, Jamila Zgiet.
Bolsistas
Na 4ª edição, o programa deve selecionar 150 bolsistas em 2015 para atuação nas 14 coordenações regionais de ensino. Os estudantes são beneficiários do Bolsa Família, recebem um auxílio de R$ 30 por mês, além de material pedagógico. “Para contribuir com o acesso e a permanência de jovens, adultos e idosos na escola, é necessário pensar em políticas públicas intersetoriais e integradas que garantam não só o direito à educação, mas também ao exercício pleno de cidadania”, disse Joyce Marra, da Coordenação de EJA da Secretaria de Educação do DF.
Duas perguntas para