Livre, laica, misturada

 

Numa sociedade de massa, numa grande cidade, onde eventualmente não se tem ao alcance rede alguma, sobram instintos primitivos. A violência é uma de suas expressões

A cada notícia de violência em nosso círculo, reagimos com tristeza e revolta. Nossos mais primitivos sentimentos podem aflorar. Felizmente, somos contidos pela rede social que nos ampara.

A nossa época tem tornado o homem ao mesmo tempo livre e só. Sem família, sem religião, sem grupo, com estímulos e exigências além de suas possibilidades, para o homem contemporâneo o viver em sociedade adquire enorme complexidade. Em uma sociedade de massa, em uma grande cidade, onde eventualmente não se tem ao alcance rede alguma, sobram instintos primitivos. A violência é uma de suas expressões.

O sociólogo Richard Sennett, ao estudar um mesmo grupo social da Nova Inglaterra com intervalo de 30 anos, avaliou que, pela mobilidade espacial da sociedade americana, na segunda geração, com 40 anos de idade, já não havia ninguém que tivesse alguém acompanhando a sua história de vida.

Na grande cidade, pessoas se protegem em grupos de apoio. Quando meu filho tinha uns 6 anos, encantou-se por uma menina de sua idade, filha do porteiro do prédio. Passeavam no pilotis de mãos dadas. Um dia, conversei com minha “futura nora” sobre o namoro. Ela me disse que não era o caso, pois sua mãe lhe ensinara que somente poderia namorar quando crescesse, sendo ou alguém de sua igreja ou vizinho de sua avó...

Nem todos alcançam grupos de apoio positivo. E, entre milhões, algumas centenas de pessoas podem causar grandes problemas. Conferimos ao Estado a responsabilidade da ordem e da paz, que, por óbvio, não consegue evitar toda a violência. (Não obstante, isso não o exime de oferecer a todo o território a segurança de que é monopolista.)

Contudo, estamos pouco atentos à própria forma da cidade, aquela que acolhe a vida social. E que, apesar de não ser determinante quanto ao comportamento civil, tampouco é destituída de responsabilidade.

Algumas cidades conformam-se segregadamente por grupos sociais, étnicos ou religiosos e em bairros exclusivos. Atlanta, nos Estados Unidos, com quatro milhões de habitantes, organiza-se espacialmente como um grande arquipélago, onde a “água” é formada por bosques e as “ilhas” são comunidades com poucas centenas de moradias, articuladas pelo automóvel. O centro da cidade é formado por corporações, hotéis e edifícios de estacionamento — claro, tem pouca vitalidade e é bem policiado, onde turistas circulam (!) com conforto. Será Atlanta uma cidade? Será um parque temático? Será a cidade genérica conceituada por Rem Koolhaas, ambientalmente insustentável, economicamente inviável? Tais subúrbios jamais alcançarão a maturidade urbana. Servem quiçá como alugadores de esperanças, que se renovam permanentemente nos seguintes subúrbios, na medida em que os moradores se sucedem e que, como nos dizia Sennett, se vejam sem história.

Em encontro no IAB, há algum tempo, o poeta-filósofo Antonio Cicero pontuou que comunidade é fechamento, enquanto cidade é abertura, lugar da sociedade.

Desenhar a cidade de uma sociedade livre é o desafio contemporâneo. Não será a cidade perfeita dos modernos, onde tudo teria seu lugar e onde o futuro seria róseo. Tampouco será uma nova. Nos tempos da incerteza, a cidade é mais difícil, mais complexa, diversa e múltipla.

A cidade brasileira está dada. Sua população não cresce; suas construções, sim. Seu passivo socioambiental é enorme, com favelas, subúrbios e periferias, laicos e misturados, nem sempre livres, à espera de sua incorporação à cidade democrática. Ela precisará desenvolver um movimento de concentração e adensamento que ofereça um mínimo de sustentação ambiental. Nesse movimento — tão alheio à cidade rodoviarista! — a cidade poderá buscar condições de qualidade urbana compatível com a democracia e com a sociedade livre. Penso que esta é uma expressão do que poderemos chamar por desenho do possível. É um belo projeto.

(E, no entanto, continuamos submetidos aos interesses expansionistas da cidade especulativa e segregadora, que inviabiliza o meio ambiente e a universalização dos serviços públicos, inclusive o de segurança, condição de cidadania. Cidadania, a rede contemporânea.)

Sérgio Magalhães é arquiteto