Fúria ao volante

Correio braziliense, n. 18998, 01/05/2015. Cidades, p. 15

Adriana Bernardes

Você seria capaz de matar alguém? O que o faria tirar a vida de outro ser humano? No Distrito Federal, uma buzinada, a disputa por uma vaga de estacionamento ou uma simples fechada no trânsito tem despertado a fúria de motoristas. A intolerância com a falha alheia ultrapassa os limites da razoabilidade e termina em xingamentos, perseguições e até em morte. Faltam estatísticas sobre os registros de brigas no trânsito no Brasil e pesquisas aprofundadas sobre os motivos que levam um cidadão comum a se tornar um homicida. Estimativas da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) apontam que entre 13% e 18% dos motoristas brasileiros sofrem de algum problema psicológico ou psiquiátrico. Três tipos de patologias são mais frequentes: a sociopatia, o transtorno explosivo intermitente (TEI) e o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Para tirar essas pessoas das ruas, a primeira coisa a se fazer é tornar mais rigorosa a avaliação psicológica feita durante o processo de habilitação e de renovação da carteira de motorista (veja Três perguntas para).

Na edição de ontem, o Correio Braziliense mostrou que adolescentes e jovens têm proporcionado verdadeiros shows de horrores em brigas, muitas vezes por motivos fúteis, que acabam em morte. A exemplo desse tipo de massacre, a fúria atrás do volante também tem deixado famílias inconsoláveis pela perda de entes queridos de forma brutal e incompreensível à luz da razão. Mesmo depois de nove anos, a servidora pública federal Valéria da Costa, 56 anos, ainda não conseguiu respostas que pudessem justificar o ato dos cinco rapazes que espancaram até a morte o filho dela, o produtor cultural Ivan Rodrigues da Costa, conhecido como Neneco, aos 29 anos.

Tudo começou com uma discussão no trânsito em um estacionamento da 202 Norte. Ele saía de uma boate com amigos e trocava o pneu do carro, quando o motorista de outro veículo deu marcha a ré em alta velocidade na direção do grupo. Um deles bateu no vidro do carro alertando sobre o risco. Isso bastou para que os cinco ocupantes descessem e começassem a sessão de espancamento, que incluiu golpes de capoeira. Neneco morreu nove dias depois, em 30 de agosto de 2006.

Valéria e as filhas mais novas, Camila e Gabriela, esperaram sete anos para ver quatro dos cinco agressores condenados. Fernando Marques Róbias e Francisco Edilson Rodrigues de Sousa Junior pegaram 18 anos e seis meses de prisão. Edson de Almeida Teles, 19 anos e nove meses, e Alexandre do Nascimento, 19 anos de reclusão. O juiz concedeu a eles o direito de recorrer em liberdade.

Só um dos agressores acabou sentenciado logo após o crime: Thiago Martins de Castro foi condenado a 16 anos e seis meses, mas atualmente está em regime aberto. A mãe de Neneco não teve estrutura para assistir à sessão do Tribunal do Júri. Foi no primeiro dia e chegou nos 15 minutos finais do julgamento a tempo de ouvir um dos advogados apelar aos jurados que seu cliente havia se tornado um pai de família. A mãe do rapaz ainda se emociona com a reação da caçula Gabriela, então com 20 anos. “Ela se levantou e gritou: ‘pelo menos o seu cliente está vivo. E do meu irmão foi tirado o direito de viver’ e começou a chorar compulsivamente”, relembra.

Duas horas mais tarde, a família de Neneco conheceu a sentença. “Chorei um choro engasgado por sete anos. Todos foram condenados. Tive a sensação de que não seria mais um crime impune. Pela primeira vez, levantei os olhos, olhei para eles (os assassinos) e perguntei: por que me tiraram o bem mais precioso? Até hoje, a pergunta continua sem resposta. Serão quantos mais?”, indaga.

"Parei de ir atrás"
Neneco não foi o último nem o primeiro a perecer pela intolerância desmedida de motoristas. O endereço de Francisca Pulo Campos, em Ceilândia Norte, é o mesmo há 36 anos. Foi lá que ela criou os três filhos, todos homens, e onde sentiu a dor de enterrar um deles, aos 22 anos, morto após uma discussão de trânsito em 1999. A mulher resistiu a conversar sobre o assunto. Mas mudou de ideia no último instante, motivada pela curiosidade de saber a razão de ter sido procurada para falar sobre o crime tantos anos depois. “Nunca soube quem fez isso. Fui à polícia umas três vezes, mas o delegado dizia que ainda não tinha pistas. Parei de ir atrás”, conta. Mas a morte de um filho não se esquece.

Francisca lembra que, na noite em que foi morto, Paulo pretendia comer um cachorro-quente com amigos perto de casa. Segundo testemunhas, o grupo teria iniciado a discussão por conta de uma vaga no estacionamento. No meio do bate-boca, o condutor da caminhonete D-20 vermelha arrancou e atropelou Paulo, que havia se colocado na frente do veículo para impedir a saída do homem. “Meu filho chegou ao hospital morto. Tinha um corte enorme na cabecinha dele...” Ela fica em silêncio alguns instantes e as lágrimas molham seu rosto. Procurada, a Divisão de Comunicação da Polícia Civil informou apenas que o inquérito da morte de Paulo foi encaminhado ao TJDFT em 2011. Não revelou o nome da pessoa indiciada nem o número do inquérito.

Chorei um choro engasgado por sete anos. Todos foram condenados. Tive a sensação de que
não seria mais um crime impune"
Valéria da Costa,
mãe de Neneco

Três perguntas para
Dirceu Rodrigues Alves Júnior, diretor de Comunicação e do Departamento de Medicina de Tráfego Ocupacional da Abramet

O que pode explicar os ataques de fúria no trânsito?
Estamos vivendo num trânsito maluco em que o indivíduo está constantemente tenso e estressado. Classificamos esse estresse em três tipos: o do trabalho repetitivo (congestionamento, mesmos movimentos); o estresse psicológico (medo de ser assaltado, sequestrado) e o estresse social (querer chegar em casa, não conseguir buscar o filho na escola). Estimamos que entre 13% e 18% da população de motoristas tenham algum problema psicológico ou psiquiátrico. Três tipos de patologias são mais frequentes: a sociopatia, o transtorno explosivo intermitente (TEI) e o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC).

Qual a diferença entre elas?
A sociopatia é a rejeição às pessoas. O sujeito não consegue conviver nem se aproximar e, no trânsito, é capaz de dar uma fechada, colar na traseira e jogar farol alto na cara. É capaz de agredir e matar. E não tem o menor arrependimento do que faz. É difícil para nós, médicos, identificar essas pessoas. O indivíduo com TEI é aquele cara que tem o pavio curto, não tem paciência e, em determinado momento, explode. É capaz de parar o carro e agredir o indivíduo. Mas, diferentemente do sociopata, logo após o ato, tem um arrependimento terrível. E tem o motorista com TOC. Ele tem compulsão por velocidade, quer ser o primeiro sempre. Se está todo mundo parado na fila, ele vai sair daquela e passar para outra a fim de chegar logo lá na frente. É aquele que irrita a todos nós. E, se nesse mesmo ambiente dos inconformados houver um condutor com TEI ou um sociopata, eles vão saltar e matar o cara.

Como mudar isso?
Temos que selecionar melhor os condutores e combater esse tipo de conduta. Brigamos para que, dentro do serviço médico, tenhamos psicólogos e psiquiatras avaliando de forma mais profunda e demorada os candidatos a habilitação para detectar os desvios comportamentais que levam a riscos no trânsito. Isso deve se dar tanto no processo de avaliação e como na hora da renovação da carteira, porque o distúrbio pode ser desencadeado no decorrer do tempo. Sabemos que o exame clínico geral é essencial e deve ser feito dos pés à cabeça. Mas não temos visto isso por parte dos nossos colegas. A avaliação é precária e superficial. É necessário que o médico de tráfego troque informações com o médico que orienta o paciente. É preciso haver notificação compulsória de patologias que comprometam a direção veicular para que essa pessoa seja melhor avaliada pelos Detrans e pelo profissional de medicina de tráfego. Mas, para isso, é preciso mudar a cultura.