O globo, n. 29876, 25/05/2015. Sociedade, p. 21

Amor multicolorido

Casais já buscam mais crianças de cores diversas, mas ainda passam por situações difíceis

Cada vez mais casais brasileiros estão dispostos a adotar crianças com tons de pele diferentes dos seus. O número de adultos que buscavam apenas crianças brancas caiu de 38% para 26% desde 2010. O brasileiro na fila para adotar uma criança está muito mais disposto a abraçar um menor de idade com a cor de pele diferente da sua. Em 2010, 38,73% dos adultos pretendentes queriam adotar somente crianças brancas, segundo a Corregedoria Nacional da Justiça (CNJ). Hoje, essa porcentagem caiu para 26,49%. Por outro lado, famílias formadas à luz da diversidade continuam experimentando constrangimento provocado por comentários inadequados e atitudes preconceituosas.

GUSTAVO STEPHANFelicidade que vence a indelicadeza. Gabriela e Arlindo com a pequena Manuela: “Já me perguntaram se minha filha era minha neta e se ‘peguei para criar’”, lembra a mãe

No Dia Nacional da Adoção, celebrado hoje, profissionais envolvidos comemoram o aumento da pluralidade, que contribui para acelerar o número de processos. Mas lamentam casos como o que ocorreu numa loja de grife da Rua Oscar Freire, em São Paulo. No final de março, um menino negro de 8 anos que passava perto do estabelecimento com seu pai, de pele branca, foi repreendido por uma vendedora que se dirigiu ao garoto como ele estivesse pedindo esmola.

Este mês, a figurinista Maria Diaz publicou no Facebook um texto criticando uma lanchonete em Ipanema cujo funcionário expulsou seu filho de 5 anos. “Depois de ver que estava comigo, branca, o atendente pediu desculpas. Racismo é crime”, escreveu ela.

Os dois casos ganharam enorme repercussão nas redes sociais. Mas, para muitas famílias, as histórias não surpreendem.

A adoção sempre esteve nos planos de Arlindo e Gabriela Rocha. A ideia era ter um filho biológico e um adotado. O casal, que perdeu um bebê durante a gestação, começou o processo de adoção em 2012. E em maio de 2014 apareceu Manuela, então com 2 meses.

— No início, queríamos uma criança recém-nascida e branca, mais parecida com a gente. Mas, antes mesmo da entrada nos grupos de apoio para a adoção, mudamos de ideia. Percebemos que pouco importa o que os outros acham ou falam da gente. Quando a assistente social ligou dizendo que tinha uma bebê, negra, para nós, meu marido pirou! Viveu a gravidez de nove meses em dois dias — diz Gabriela.

Desde então, em meio às alegrias, vez ou outra há situações desagradáveis por conta da reação de algumas pessoas ao ver a criança, com 1 ano e 2 meses.

— Tem gente que não se aguenta e pergunta coisas mirabolantes, com receio de fazer a questão objetiva e seca. Já perguntaram se minha filha era minha neta e se “peguei para criar", como se fosse um cachorro — critica a consultora de empresas de 40 anos, que ainda está com a guarda provisória da filha.

Em 2010, segundo dados da CNJ, apenas 30,59% dos pretendentes do cadastro aceitavam crianças negras. Hoje, são 43,15%. Da mesma forma, em 2010, 58,58% não viam problemas em adotar menores de cor parda. Hoje, são 71,04%.

— Casais brancos que adotam crianças negras têm de saber lidar com isso. E só devem iniciar o processo de adoção se estiverem preparados para situações como essas e outras várias que surgirão — opina a juíza Mônica Labuto Fragoso Machado, da 3ª Vara da Infância e da Juventude, uma das mais atuantes no Estado do Rio e responsável por metade das adoções do último ano (cerca de 250).

De acordo com a magistrada, ainda existem pretendentes que não entenderam o que é a adoção nem como funciona o processo. Ela não se refere ao mecanismo em si, que tem complexidades:

— Já ouvi coisas como: “Quero uma criança sem histórico”. Impossível! Ou casal que aceita pardo, mas com um tom de pele mais claro. Muitas famílias estão aqui, mas ainda remoem a tentativa frustrada de ter filhos biológicos — opina Mônica.

A consultora Gabriela Rocha afirma que é comum as pessoas chegarem ao ponto de questionar a “influência genética” de sua filha. Ela conta que, certa vez, se sentiu “vingada” ao usar de ironia para responder que havia posto o marido em sua vida quando ele tinha 28 anos. E “sem saber a procedência”.

— Confio na educação, no carinho e no amor, independentemente de qualquer coisa. Vou educá-la para enfrentar esse tipo de situação. Infelizmente, não posso evitar que ela sofra preconceito. Tenho de prepará-la para lidar com isso.

Roseana Saraiva, de 43 anos, mãe de Luiz Felipe, de 9 anos, conta que o filho já sofreu preconceito e xingamentos no clube e no condomínio. Comenta que, quando decidiu adotar uma criança negra, enfrentou até a desconfiança dos familiares. É que, aos 18 anos, seu pai chegou a proibi-la de namorar um negro:

— Quando preenchemos o cadastro, nos perguntamos: “Como podemos escolher a cor do bebê?”. Não achávamos que isso deveria ser importante — conta ela, casada com Enrique. — Já ouvi diversas vezes que fui corajosa, que sou guerreira. Não sou nada disso, sou apenas uma mulher com muito amor para dar ao Luiz Felipe, nossa maior alegria.

FORA DA LISTA OFICIAL

Para a advogada Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direitos de Família, essas situações são fruto do preconceito com a adoção, e não o racial. Segundo ela, os grupos de apoio à adoção têm feito trabalho excelente e impulsionam a mudança no perfil das crianças desejadas (este era, essencialmente, recém-nascida, menina e branca).

— Tem gente que confunde adoção com caridade. Quantas vezes escuto: “nossa, que pessoa boa você é!”. Adoção é amor. Caridade é doar 50 pacotes de fralda para um abrigo.

A adoção no Brasil acontece via Cadastro Nacional, mas, na maioria das vezes, fora da lista oficial de crianças disponíveis. Alguns juízes fazem correr, em paralelo, a etapa de destituição familiar e o processo de adoção em si. Isso porque, para as crianças entrarem na lista, precisam ter o processo de destituição familiar concluído. Mas isso não é regra e muitas delas sequer estão no cadastro, tamanha a demora para a conclusão desta etapa inicial. Hoje, são cerca de 30 mil as crianças “nem-nem”: nem vivem com seus pais em casa, nem estão no cadastro.

Das 5.691 crianças disponíveis no cadastro, 67% são negras e pardas e 77% com mais de 10 anos. Segundo a Corregedoria Nacional da Justiça, em 2014 foram feitas 522 adoções via cadastro. Outras 1.352 fora do cadastro foram contabilizadas pelo órgão. Em 2013, esses dados foram 371 via cadastro e 806 fora. Em 2015, até o momento, cerca de 400 adoções foram efetivadas (dentro e fora do sistema).