Título: No reino de Lilliput
Autor: Feliciano, Guilherme G.
Fonte: Correio Braziliense, 11/08/2011, Opinião, p. 23

Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (SP), professor associado do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região

No conhecido romance de Jonathan Swift (1726), Lemuel Gulliver naufraga e é arrastado para a Ilha de Lilliput, cujos minúsculos habitantes (não mais que seis polegadas) viviam em guerras inúteis, no belicismo das futilidades. Com isso, Swift pretendeu criticar a mentalidade pequena dos políticos na Inglaterra e em muitos países europeus de seu tempo. Mediocridade, aliás, que ainda mais se ressalta na segunda parte da narrativa, quando Gulliver conhece as terras árticas de Brobdingnag e seus gigantescos habitantes, cujas imperfeições físicas saltam à primeira vista.

Desde junho deste ano, o Brasil e os países de todo o mundo estão diante de um genuíno desafio gulliveriano: ser, na economia, grande e imperfeito (a que afinal corresponderá, na perspectiva ética, ser pequeno e fútil), ou ser da estatura econômica que a circunstância jurídica permitir, mas com a grandeza da estatura moral de quem elegeu a isonomia e a solidariedade como os valores primeiros de sua sociedade civil.

Em 16 de junho, a Organização Internacional do Trabalho aprovou, em sua 100ª Conferência Geral, o texto da Convenção nº 189 ¿ e da correspondente Recomendação nº 201 ¿, tratando do trabalho decente para os trabalhadores domésticos em todo o mundo. É a primeira vez que a OIT dedica um instrumento internacional dessa envergadura para cuidar exclusivamente do trabalho humano no âmbito doméstico. E, ao fazê-lo, o fez sobre bases muito claras: proteção dos direitos humanos dos trabalhadores domésticos (art. 3º, 1), liberdade sindical e de associação (art. 3º, 2, "a"), abolição do trabalho infantil doméstico (art. 3º, 2, "c"), eliminação de toda forma de discriminação (art. 3º, 2, "d"), meio ambiente de trabalho seguro e saudável (art. 13) e condições de isonomia com os demais trabalhadores urbanos e rurais, "tendo devidamente em conta as características específicas do trabalho doméstico" (art. 14).

Eis, afinal, o que significa o propalado "trabalho decente": trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana (OIT, 1999). Mas, indagaria o leitor, por que a grita justamente agora, em que se anunciam crises nos maiores mercados do planeta (EUA e União Europeia)? E não é o trabalho doméstico, afinal, um trabalho decente?

Falemos de Brasil. Entre nós, a categoria dos trabalhadores domésticos foi discriminada já no nascedouro do atual Estado constitucional. À diferença dos demais trabalhadores urbanos e rurais, aos domésticos foram negados, na Constituição de 1988, direitos como o FGTS, o seguro-desemprego, as horas extras e o adicional noturno (art. 7º, par. único). Mas não é só. Os índices estimados de informalidade, de trabalho infantil e até mesmo de trabalho análogo ao de escravo no âmbito doméstico, causam especial apreensão. Segundo dados da Pnad (2001), 45% dos menores que trabalham em casas de terceiros tinham, no início da década, menos de 16 anos (logo, não poderiam trabalhar).

Os brasileiros têm, agora, a oportunidade histórica de resgatar sua dívida cidadã com a categoria dos trabalhadores domésticos, que por todo o mundo segue sendo "subvalorizada e invisível", na dicção da 110ª OIT. Pode ratificar a Convenção nº 189, pelos mecanismos de praxe (no âmbito do Congresso Nacional, o decreto legislativo; no âmbito do Poder Executivo Federal, o decreto regulamentador), tornando-a norma jurídica supralegal, prevalecendo sobre a vetusta Lei nº 5.859/72, dada a sua natureza visceralmente humanitária (nesse sentido ¿ mas para outra hipótese ¿ já se manifestou o STF, por exemplo no RE 349.703/RS).

Pode, mais, aprová-la nas duas casas do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos parlamentares; e, nesse caso, torná-la-á equivalente às próprias emendas constitucionais (art. 5º, §3º, da Constituição), sepultando qualquer discussão sobre eventuais óbices decorrentes do art. 7º, parágrafo único, da Lex legum. E, em todo caso, garantindo aos empregadores domésticos a mais ampla e clara informação, com campanhas nacionais de instrução, além de um razoável prazo para adaptação (à maneira de vacatio legis), dado o grau de confusão e ignorância que hoje rege a matéria.

Ou poderá, o mesmo Brasil, fechar-se em copas e, como fez com outras tantas convenções da OIT (a exemplo daquelas sobre liberdade sindical ¿ nº 87 ¿ e sobre dispensas por iniciativa do empregador ¿ nº 158), ignorar solenemente os novos ventos que sopram. Esquecendo-se do mundo e debruçando-se, como bom lilliputiano, sobre as suas próprias futilidades.