Enclave indígena na capital paulista causa tensão crescente

 

“Se eu não morar nesta terra vivo, vou morar nesta terra morto”. A promessa é do cacique Ari Guarani, de 74 anos, um dos protagonistas na disputa por uma área de 532 hectares na cidade de São Paulo, na região do Pico do Jaraguá. Cercado por crianças que entram e saem da mata ao redor carregando frutas e por mulheres que cozinham em fogão à lenha ou preparam colares de penas e miçangas, Ari descreve a rotina tradicional que recuperou desde que ele e outros guaranis ocuparam o terreno que pertence a um ex-deputado constituinte, há dez meses. Não há luz elétrica, rádio ou televisão. De dia, o cacique trabalha na roça. À noite, observa as estrelas e reza em guarani, fumando cachimbo. A densa Mata Atlântica, o som das maritacas e uma cachoeira que corta o terreno tornam difícil acreditar que a área está encravada no meio da capital paulista.

A vida que Ari tem cultivado está ameaçada. A pedido do proprietário do terreno, a Justiça já decidiu que os índios terão que sair. A remoção feita pela Polícia Militar deveria ocorrer daqui a uma semana. Os guaranis, que têm chamado parentes de outras aldeias do estado para apoiá-los, prometeram resistir à reintegração de posse. Diante do clima de tensão, o Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu liminarmente, na última sexta-feira, suspender a reintegração temporariamente. A decisão adia um conflito que os índios não estão dispostos a perder:

— Quando os portugueses chegaram aqui, o povo indígena já ocupava a terra. Queria que a Justiça entendesse isso. Estamos lutando pelo futuro das nossas crianças. Isso tudo nos deixa muito preocupados e revoltados — afirmou cabisbaixo outro cacique, Vitor Guarani.

Os cerca de 700 índios guaranis afirmam ocupar a região pelo menos desde a década de 1950, muito antes que o crescimento demográfico da capital paulista os cercasse de casas e ruas, numa urbanização desordenada típica dos bairros periféricos da capital.

— Meu avô costumava caçar raposas aqui nesse pico — afirma o vice-cacique David Martim, de 27 anos, apontando para o planalto que hoje é cortado pela Rodovia Bandeirantes.

Em 1987, o governo federal reconheceu a histórica presença deles no local e demarcou a menor reserva indígena do país, de 1,7 hectare. Confinados, os guaranis sobrevivem às custas do Bolsa Família e da venda de artesanatos.

- Agência O Globo

A água que consomem foi contaminada por esgoto de uma favela. Cerca de 50% das crianças da tribo sofrem de desnutrição, por falta de alimentos. A maioria delas só fala guarani. O alcoolismo é um problema grave entre os indígenas. Os jovens se casam muito cedo, aos 13 ou 14 anos, como na cultura tradicional, e têm dificuldade para concluir os estudos e se inserir economicamente na sociedade que os rodeia.

FUNAI RECONHECEU ÁREA INDÍGENA

Na maior cidade da América do Sul, as mulheres ainda preferem dar à luz na própria aldeia, com a ajuda de parteiras da tribo. Os homens costumam fumar um cachimbo feito de pinho retirado da Mata Atlântica do Pico do Jaraguá, mas sequer o fumo que consomem eles conseguem produzir em seus escassos roçados.

Há dois anos, a Funai publicou no Diário Oficial da União estudo antropológico que poderia mudar a vida dos guaranis. O documento reconhecia como área indígena pouco mais de cinco milhões de metros quadrados na Zona Norte da capital. Desde então, o processo repousa nos escaninhos do Ministério da Justiça, sem que o ministro José Eduardo Cardozo confirme oficialmente o status de reserva do terreno.

Cansado de esperar pela canetada, Ari resolveu tomar posse de fato do espaço. Os índios penduraram na entrada da área ocupada uma placa que diz “Área Protegida — Governo Federal”. O sinal, que costuma estabelecer os limites da terra indígena, é, na verdade, apenas uma réplica. Famílias guaranis montaram na área casas de madeira e lona, plantaram roça de mandioca, batata-doce e milho e passaram a tirar água de uma cachoeira limpa no terreno.

Enquanto o processo não for concluído, o dono do terreno é o ex-prefeito de São Bernardo e ex-deputado constituinte Antônio Tito Costa. Ele herdou a área, que teria sido comprada por seu sogro em 1947. Afirma que o terreno já foi arrendado, abrigou uma olaria e que pretende plantar eucaliptos na terra:

— Essas terras nunca foram habitadas por índios. E agora estão criando um drama tão grande. Virei bandido, dizem que serei responsável pela morte de 700 índios. Deus do céu! Só vou conversar amigavelmente depois da desocupação — afirma Tito Costa.

Ele se diz disposto a negociar a desapropriação com remuneração do terreno. Já se reuniu com o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, mas a Constituição não prevê pagamento por terras consideradas indígenas aos ex-proprietários.

PELO MENOS 31 RESERVAS A SEREM IMPLANTADAS

O litígio em São Paulo se soma à escalada de tensão indígena que acontece no governo Dilma. Levantamento feito pela Funai a pedido do GLOBO mostra que pelo menos 31 reservas esperam apenas pela assinatura de Cardozo e da presidente Dilma para serem implantadas. Há processos prontos na fila há mais de cinco anos.

Sem a confirmação oficial, os indígenas tentam fazer valer o direito na prática, com invasões, enquanto os proprietários privados tentam garantir a posse na Justiça. O ministério tem promovido mesas de negociação entre indígenas e proprietários rurais para tentar obter consenso antes da homologação das áreas.

Há ao menos três mesas em andamento, a principal delas dos Guarani-Kaiowá, em Mato Grosso do Sul. A estratégia tem sido questionada por defensores dos índios. Eles afirmam que isso fragiliza os direitos indígenas e promove assassinatos de líderes. O Ministério da Justiça informou que atua junto aos governos estadual e municipal em busca de uma solução que evite o conflito em São Paulo, mas não deu prazo para a homologação da área.