O "insuportável peso" da censura é derrubado

Correio braziliense, n. 19008, 11/06/2015. Brasil, p. 8

Julia Chaib

Jorge Macedo

Em decisão unânime, o Supremo Tribunal Federal (STF) liberou a publicação de biografias sem prévia autorização. “O peso da censura é insuportável e intolerável”, afirmou o decano da Corte, ministro Celso de Mello. Ao autorizar as obras sem conhecimento prévio do biografado, o STF legislou ontem, mais uma vez, no lugar do Congresso Nacional, e acabou com a polêmica que divide escritores e artistas sobre a necessidade de autorização do biografado ou seus herdeiros para que a obra seja veiculada. 

Os nove ministros da Corte presentes no plenário foram favoráveis à ação direta de inconstitucionalidade (Adin) movida pela Associação Nacional de Editores de Livros (Anel), em 2012, para derrubar o impedimento da veiculação de biografias não autorizadas. Em uma sessão que durou cinco horas, a relatora do caso, ministra Cármen Lúcia, disse que o julgamento era “sobre o direito à palavra e à expressão”. O entendimento de Cármen, seguido por todos os outros oito ministros presentes no plenário, é o de que proibir as obras sem consentimento constitui um ato de censura. 

A ação da Anel questionava os artigos 20 e 21 do Código Civil sobre respeito à privacidade e à liberdade de expressão, bases para as ações judiciais que suspendiam a publicação das obras. Os ministros decidiram manter o texto dos artigos, mas conferir a eles uma nova interpretação, segundo a Constituição, o que era solicitado na ação. Ao dar início ao julgamento, a relatora resumiu o voto, editado de 300 para 120 páginas, com o provérbio popular “cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu”.“Censura é forma de cala-boca. Pior, de calar a Constituição. O que não me parece constitucionalmente admissível é o esquartejamento da liberdade de todos em detrimento da liberdade de um. Cala-boca já morreu. A Constituição garante”, disse. 

Para os ministros, os dois dispositivos do Código Civil hierarquizam direitos e se colocam acima de direitos constitucionais fundamentais, como a liberdade de expressão e o direito à informação. A ministra justificou o voto dizendo que, apesar de liberar publicações sem autorização, o direito de todas as pessoas que se sentirem prejudicadas de recorrerem à Justiça segue preservado. A Constituição garante que quem se sinta agredido pode recorrer à Justiça e ser reparado com indenização. “Fora isso, é censura”, disse ela, ao declarar que a liberdade da sociedade não pode ser limitada pela censura de alguns poucos. 

Memória

Com argumentos ligeiramente distintos, o ministro Roberto Barroso afirmou que a sociedade tem o “direito de preservar a memória nacional”. Sempre com referências à Constituição, Barroso ressaltou que não deve existir hierarquia entre direitos essenciais, algo que os artigos 20 e 21 do Código Civil faziam ao se sobrepor ao direito de liberdade de expressão garantido constitucionalmente. “Liberdade de expressão não é garantia de verdade nem de Justiça. É garantia da democracia.” 

Ele afirmou que qualquer eventual reparação por dano à imagem do biografado deve se dar a posteriori da publicação. “A ideia de apreensão de obras é aterradora, salvo em situações extremas.” O entendimento da Corte derrota alguns artistas, como o cantor e compositor Roberto Carlos, que conseguiu suspender com uma ação na Justiça, em 2007, a biografia feita pelo jornalista Paulo César Araújo, chamado Roberto Carlos em detalhes. 

O artista chegou a entrar como amicus curiae (amigo da Corte) na ação e expôs a posição contrária às biografias não autorizadas durante o julgamento por meio do Instituto Amigo, criado por ele. Em 2013, quando começou a tramitar no Congresso um projeto sobre o tema, diversos compositores vieram à tona para se contrapor à liberação das obras.

Por meio da associação Procure Saber, coordenada por Paula Lavigne, diversos artistas se manifestaram contrariamente à publicação das biografias, como Djavan, Chico Buarque e Caetano Veloso. Desgastada com a polêmica, a associação não trabalha mais com o tema. 

No caso de biografias proibidas, cuja decisão definitiva judicial já tenha sido publicada, o entendimento inicial é de que as obras podem ser veiculadas por uma nova editora. No caso específico da biografia de Roberto Carlos, Araújo tem um acordo com a defesa do cantor. O autor, no entanto, já avisou que pretende publicar uma nova versão ampliada. “Vou ver como adequar isso à nova realidade jurídica do país. O acordo foi feito quando o entendimento era outro. Se minha obra não for publicada, meu livro será o último proibido do país e Roberto, o último censurador”, disse.