Valor econômico, v. 15, n. 3737, 16/04/2015. Internacional, p. A15

 

China não quer subverter a ordem financeira global, diz o premiê Li

 

Por Lionel Barber, David Pilling e Jamil Anderlini | Financial Times, de Pequim

 

ReutersO primeiro-ministro da China, Li Keqiang, que disse ser contra a desvalorização do yuan para acompanhar outras moedas

Em sua primeira entrevista à imprensa internacional desde que se tornou primeiro-ministro, o homem responsável por sustentar um crescimento forte na China diz que Pequim está disposta a "trabalhar com outros [países]" para aquecer a economia mundial.

A turbinada economia chinesa está crescendo no ritmo mais lento em um quarto de século e deverá esfriar ainda mais. Ao mesmo tempo, o governo comandado pelo Partido Comunista está envolvido num amplo expurgo anticorrupção, e os líderes do país estão tentando limpar décadas de poluição industrial desenfreada.

Ao receber o "Financial Times" no Grande Salão do Povo, na Praça da Paz Celestial, em Pequim, o segundo homem mais poderoso da China parece estar encarando esses desafios com tranquilidade.

Li Keqiang é diretamente responsável por gerenciar aquela que é hoje a maior economia do mundo - ao menos em termos de paridade de poder de compra. Ele lidera ainda o esforço para abandonar um modelo passado - de crescimento econômico baseado no crédito e nos investimentos - e abraçar um futuro mais sustentável.

Em sua primeira entrevista à mídia ocidental, Li mostrou-se descontraído, acolhedor e claramente no comando de sua missão. Respondeu perguntas por uma hora.

Sua principal mensagem ao mundo é de manutenção do compromisso da China com a atual ordem financeira mundial, especialmente na esteira da decisão de Pequim de fundar o Banco Asiático de Investimento em infraestrutura (AIIB, na sigla em inglês).

Até janeiro, nenhum país ocidental parecia disposto a participar de uma instituição que representa um desafio claro à ordem mundial estabelecida e dominada pelos EUA. Mas, desde então, a maioria dos aliados de Washington já declarou sua adesão ao banco, num exemplo notável de como o centro do poder geopolítico está se deslocando para o oriente.

A decisão britânica, no mês passado, de aderir ao AIIB, apesar dos protestos de Washington, provocou uma corrida de outros aliados europeus e ocidentais que deixou os EUA parecendo imobilizados e isolados. Mesmo altos funcionários americanos descreveram o episódio como uma surpreendente vitória diplomática de Pequim.

Durante toda a entrevista, porém, Li absteve-se de se vangloriar e insistiu repetidamente que a China não tem nenhuma intenção de criar uma nova ordem mundial.

"A China quer trabalhar com outros [países] para defender o sistema financeiro internacional existente", disse Li. "[O AIIB] pretende ser um complemento ao atual sistema financeiro internacional."

Para ele, o AIIB e o Banco de Desenvolvimento Asiático, dominado pelo Japão e pelos EUA, podem "trabalhar em paralelo no estímulo ao desenvolvimento asiático".

A China, por vezes, queixou-se de que a ordem internacional liberal do pós-guerra, criada pelas instituições de Bretton Woods (o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial), foi montada com o objetivo de contê-la e a outros Estados comunistas. Acadêmicos e autoridades do país têm argumentado que essas instituições são obsoletas e precisam ser substituídas.

No que diz respeito à questão específica de se a China deseja substituir as instituições de Bretton Woods, Li foi categórico: "Não se coloca a possibilidade de ruptura da ordem existente", insistiu ele.

"Ganhamos experiência avançada ao trabalhar com o Banco Mundial e outras instituições, e nossa adesão [à Organização Mundial do Comércio] também ajudou as empresas chinesas a adquirir um conhecimento mais profundo sobre como elas podem competir nos termos das regras internacionais. Assim, a China tem sido beneficiária do sistema internacional atual em termos tanto de paz como de desenvolvimento."

Li expressou até um cauteloso entusiasmo com a Parceria TransPacífico, iniciativa comercial liderada pelos EUA na Ásia, vista por muitos como um "clube para todos, exceto a China", já que exclui especificamente a maior exportadora de mercadorias no mundo.

Os líderes chineses apreciam usar metáforas em seus discursos, e Li revelou-se muito emotivo ao explicar suas preocupações quanto à flexibilização quantitativa (QE, na sigla em inglês) e à intenção do Fed (o banco central dos EUA) de por fim à sua política monetária não convencional.

"É muito fácil implementar uma política de QE, pois é pouco mais do que imprimir dinheiro", disse. "Quando o QE está em ação, todo tipo de agente econômico pode conseguir se manter à tona nesse grande oceano. No entanto, é difícil prever, agora, o que poderá resultar quando o QE for revertido."

Premiê chinês afirma que "não será fácil conseguir outro crescimento de 7% neste ano."

Ele adverte que a maioria dos países ainda não empreenderam as reformas estruturais necessárias para atacar as raízes causais da crise financeira mundial e compara a economia mundial a um paciente tratado com "soro e antibióticos" que ainda não teve tempo para fortalecer seu sistema imunológico e recuperar-se por conta própria.

Ao contrário de várias entrevistas com altos dirigentes chineses, essa foi espontânea e as perguntas não foram submetidas antes ao premiê nem à sua equipe.

Embora a substância da conversa tivesse sido, inicialmente, planejada para ser "off the record", Li posteriormente concordou com que o FT publicasse toda a conversa sem nenhuma alteração em suas observações - algo também incomum no contexto chinês.

O comportamento descontraído de Li contrastou com o ambiente pesadamente ornamentado e imponente e com os auxiliares impecavelmente penteados que traziam toalhas quentes, refrigerantes e copiosas quantidades de chá.

Filho de um quadro de baixo escalão do partido na província rural de Anhui, Li, de 59 anos, passou quatro anos cultivando a terra no fim da Revolução Cultural, entre 1966 e 1976, antes de ser admitido para estudar na então recém-reaberta faculdade de direito da Universidade de Pequim, em 1978.

O período que passou na mais prestigiosa universidade do país coincidiu com a versão chinesa da "glasnost", um período extraordinário de abertura a ideias políticas ocidentais há muito tempo proibidas. Junto com outros alunos, ele traduziu "The Due Process of Law" (o devido processo legal), de juiz britânico Alfred Denning. Seus colegas daquela época dizem que, a partir de então, ele foi influenciado por professores liberais, alguns dos quais acreditavam firmemente em democracia constitucional.

Em 1998 Li tornou-se o mais jovem governador na China, nomeado para a pobre província de Henan. Seu mandato foi marcado por um escândalo, pois dezenas de milhares de camponeses contraíram o HIV durante uma campanha governamental de doação de sangue.

Visto como um protegido do ex-presidente Hu Jintao, Li era considerado por muitos como seu mais provável sucessor até 2007, quando ficou claro que Xi Jinping assumiria o cargo. Desde que se tornou premiê, no início de 2013, as prioridades de Li foram cortar o tamanho e o poder da inadministrável burocracia do país, enquanto pressiona por uma urbanização mais sustentável, por reformas financeiras e declara "guerra à poluição".

Algumas fontes bem informadas sobre o cenário político na China sugerem que o premiê foi ofuscado pela consolidação de poder do presidente Xi, depois que ele e Li assumiram suas funções atuais.

Mas especialmente na economia, área em que o premiê tem tradicionalmente assumido as iniciativas, Li expressou confiança e deu a impressão de estar no comando da política governamental num momento de crescente preocupação com a desaceleração.

A China cresceu 7,4% no ano passado, o ritmo mais lento em 24 anos. Mas dados oficiais divulgados ontem mostram que o crescimento caiu para 7% no primeiro trimestre, em relação ao mesmo período de 2014, o menor ritmo trimestral desde o auge da crise financeira mundial e abaixo dos 7,3% do trimestre anterior. Outros indicadores econômicos foram surpreendentemente fracos em março, sinalizando uma provável persistência da desaceleração.

Ao falar duas semanas antes da divulgação desses números, Li admitiu a dificuldade que seu governo enfrenta para manter o emprego e cumprir a meta de crescimento fixada pelo governo para este ano: "cerca de 7%". "É verdade que a nossa economia ainda está sob pressão descendente", disse ele. "Não será fácil conseguir outro crescimento de 7% neste ano."

Mas ele insiste em que Pequim tem os meios para atingir sua meta e, ao mesmo tempo, manter "o emprego em nível razoavelmente suficiente, elevar a renda familiar e melhorar o meio ambiente".

"Temos a capacidade de manter a economia funcionando dentro da faixa adequada", disse. "Desde o quarto trimestre do ano passado, fizemos uma sintonia fina em nossas políticas fiscal e monetária, mas esses ajustes não constituem uma política de QE. Em vez disso, foram medidas regulares, focadas, e estão dando resultados."

No fim de fevereiro, a China baixou os juros pela segunda vez em três meses e anunciou planos de reformar as finanças de governo locais e de elevar investimentos em infraestrutura nas regiões do país onde o crescimento mais esfriou.

Alguns economistas e acadêmicos chineses que assessoram o governo disseram ao "FT" acreditar que os líderes estão mais preocupados com a queda no crescimento do que admitem publicamente.

Muitos acreditam que o maior risco ao crescimento é a retração do setor imobiliário, onde os preços e volumes de vendas vêm caindo desde o ano passado e podem ainda piorar bem mais. Um enorme boom imobiliário, especialmente no setor habitacional, foi o principal motor do crescimento da China por uma década, até surgirem problemas no ano passado.

Li admite que o esfriamento no setor imobiliário - onde as vendas de casas caíram 7,6% no ano passado, apesar de o investimento geral no setor ter continuado a crescer 10,5% - é uma área de especial preocupação.

"Não se coloca a possibilidade de ruptura da ordem [financeira] existente", disse Li sobre os novos bancos

"Queremos ter um crescimento constante e saudável no mercado imobiliário. O governo vai continuar a incentivar a compra de casas para uso próprio ou a melhoria nas condições de vida e a prevenir bolhas imobiliárias. Pode haver certos conflitos de interesse entre esses objetivos, e precisamos encontrar um equilíbrio adequado entre vários objetivos e exercer uma regulamentação adequada. Isso não será fácil, mas acreditamos que conseguiremos fazê-lo."

Li pareceu mais confiante quando indagado sobre a questão da queda dos preços na China, onde os preços no atacado dos fabricantes caíram por 37 meses consecutivos, o período mais longo já registrado.

"De fato, a queda dos preços internacionais das commodities colocou nosso [índice de preços ao produtor] sob muita pressão", disse Li. "Então, em certo sentido, estamos na ponta receptora de deflação, mas isso não significa que há deflação na China".

Os preços ao consumidor aumentaram 1,4% em março, no acumulado de 12 meses, bem abaixo da meta declarada do governo para este ano, "em torno de 3%", mas ainda assim em território positivo.

O Japão e a Europa estão, ambos, engajados em políticas monetárias não convencionais, em parte destinadas a desvalorizar as suas moedas, e muitos investidores mundiais estão se perguntando se a China poderá ficar tentada a desvalorizar a sua própria moeda, rigidamente controlada especialmente se o crescimento desacelerar mais que o esperado.

Historicamente, Pequim tem resistido à tentação de embarcar numa desvalorização competitiva, especialmente durante a crise financeira asiática de 1997-98. Li tem uma visão semelhante à de seus antecessores, embora não descarte categoricamente a possibilidade de a China agir para desvalorizar o yuan.

"Não queremos ver mais desvalorizações da moeda chinesa porque não podemos ficar dependendo de desvalorizar a nossa moeda para impulsionar as exportações", disse. "Não queremos ver um cenário em que as principais economias tropecem umas nas outras para desvalorizar as suas moedas. Isso poderia levar a uma guerra cambial. E, se a China se sentir forçada a desvalorizar o yuan nesse processo, não achamos que isso vai ser algo bom para o sistema financeiro internacional."

Li aprofundou-se em assuntos variados, desde as relações com o Japão até a investida do governo contra a corrupção, uma iniciativa comandada em grande medida pelo presidente Xi e que, segundo Li, vem se "intensificando".

"Queremos assegurar que o poder do governo seja exercido sem restrições", disse Li. "E que o governo esteja à altura de suas devidas responsabilidades para fortalecer a vitalidade do mercado, eliminar o espaço para enriquecimento por influência política e cortar a corrupção pela raiz."

De acordo com números públicos, centenas de milhares de funcionários públicos foram investigados por corrupção ou por infringir a disciplina do Partido Comunista nos últimos dois anos.

No que se refere às relações com o Japão, Li ateve-se firmemente ao roteiro oficial do partido, sobre a necessidade de Tóquio enfrentar as atrocidades cometidas durante a ocupação da China pelos japoneses antes e durante a Segunda Guerra Mundial.

"A atual relação China-Japão ainda é um ponto bastante difícil. Há um desejo de ambos os lados para que as relações sejam melhores, mas essa melhora precisa de uma base", disse Li. "O centro da questão é como ver a história da Segunda Guerra Mundial e se é possível extrair lições dessa parte da história para garantir que a guerra nunca venha a se repetir."

Embora Li seja categórico em dizer que a China não tenta contestar a atual ordem mundial, ele também deixa claro que mudanças são necessárias para acomodar a ascensão do país e de outros países em desenvolvimento.

"Estamos preparados para continuar a desempenhar nosso papel no desenvolvimento do atual sistema financeiro internacional", afirmou o premiê. "Também estamos preparados para trabalhar com outros países para ajudar a tornar o sistema mais justo, razoável e equilibrado."

Nesse contexto, provavelmente, uma melhor forma de ver os passos da China para criar o AIIB e outras instituições é considerá-los moedas de troca e poder de influência que Pequim poderá usar para pressionar por reformas mais rápidas, em vez de alternativas ou enfrentamentos contra a atual ordem mundial.

A tarefa de Li é tornar a voz da China proporcional à estatura cada vez maior do país e, ao mesmo tempo, garantir que a economia chinesa não saia dos trilhos. Provavelmente só depois de sua aposentadoria é que se saberá se ele teve sucesso na primeira tarefa. O veredicto quanto à segunda quase certamente virá ainda no seu primeiro mandato de cinco anos, que acaba em 2018.