Guerra às drogas?
Marcia de Holanda Montenegro
No momento em que o governo federal se preocupava em reverter a pena de morte imposta na Indonésia ao brasileiro que ingressara naquele país transportando cerca de 6 kg de cocaína camuflados em pranchas de surf, voltei os olhos para os inúmeros processos que me chegam às mãos, vindos das várias comarcas deste Estado, com condenações por tráfico de drogas, parte delas à pena de um ano e oito meses de reclusão, nem todas em regime fechado. Em meio a esses processos – pontas de verdadeiros icebergs –, pode-se delinear o cenário do combate atual ao tráfico de drogas no País.
Se, por um lado, se percebe ao longo dos anos a ausência de vontade política no combate a esse crime, vez ou outra assistimos a ataques a ele sem planejamento ou articulação. Não raro esferas do Poder Executivo se sobrepõem umas às outras, um exemplo claro dessa falta de afinação está nas tentativas de pôr fim à cracolândia – ferida renitente instalada no centro de São Paulo que tem posto à prova a capacidade de nossas autoridades de estabelecer uma frente eficaz de trabalho para dissolver esse retalho de inferno que concentra consumidores da droga barata derivada da cocaína.
Em ação recente o governo do Estado mobilizou recursos que se concentraram em métodos que não se ajustaram nem se robusteceram pela fusão de vontades e esforços. Com o insucesso da ação, surgiu a Prefeitura com o inusitado programa De Braços Abertos, em que mantém usuários de crack em hotéis da região, o que facilita a compra e venda de drogas nesses locais. E com a Guarda Metropolitana fazendo prisões de traficantes varejistas tentou pôr fim à “favelinha” que ali se instalou, na vã esperança de dar fim à cidadela alimentada por eles. O poder do Estado nunca se fez efetivamente presente na área, o que abriu espaço para que a criminalidade organizada – ativa e crescente no País – fizesse desses usuários seus clientes cativos.
A solução da cracolândia, porém, não se pode dar como uma “delenda Cartago”. Urge, com o envolvimento convergente das esferas do Poder Executivo, plano amplo e profundo de gestão pública, estruturado com claras divisões de tarefas, união de recursos adequados à magnitude e gravidade do problema e participação de agentes multidisciplinares com experiência concreta no combate ao tráfico de drogas, seu uso e consequências. Tanto quanto um drama humano de grandes proporções e de desdobramentos imprevisíveis, a cracolândia transformou-se num ameaçador problema político que exige, para sua solução, competência e coragem para enfrentá-lo. A ação policial desarticulada não fará milagres. A contenção policial da área tem levado seus frequentadores a uma mudança geográfica temporária em busca de drogas.
A cracolândia é a demonstração clara de que São Paulo prescinde da geografia do Rio de Janeiro para tolerar aqui minicidades entregues aos traficantes, para vergonha dos paulistanos. A população que nela vive insiste em ali permanecer porque traficantes lhe criaram dependência. E assim, nesse quadro desumano, as prisões feitas nem sequer produzem mudanças significativas, pois com elas os traficantes varejistas são substituídos ato contínuo e outros assumem seu lugar no abastecimento daquela população.
Prisões de traficantes de rua, se condenados, resultam – parte delas – na conhecida pena de um ano e oito meses. Logo eles voltam às ruas para reassumir seus postos, novamente voltam a ser alvos das polícias e tudo recomeça – lembrando a brincadeira infantil dos “escravos de Jó, tira, põe, deixa ficar...”.
O governo federal, sem dúvida, tem responsabilidade – e muita – pelo crescente aumento do tráfico de cocaína, porque o Brasil não a produz – o que chama a atenção para a vulnerabilidade das nossas fronteiras.
Por um lado, os traficantes sofisticaram-se e organizaram-se; por outro, perdemos a arma de poder intimidativo forte de que dispúnhamos. Antigamente ainda tínhamos alguma rigidez na lei. Eu disse alguma. O cumprimento da pena dos condenados por crimes hediondos e equiparados a eles, como o tráfico de drogas, era integralmente em regime fechado. Hoje isso faz parte da História. Além da obrigatória progressão de regime (de fechado para o semiaberto e deste para o aberto), muitos condenados por tráfico já iniciam suas penas em regime semiaberto e outros ainda são “agraciados” com o aberto. Nesses dois últimos casos, ainda que com certas obrigações, os condenados cumprem pena nas ruas, o que, por óbvio, não os impede de dar continuidade à mercancia ilícita. E há também aqueles para os quais as penas privativas de liberdade são convertidas em restritivas de direitos: um traficante no Brasil chega a ser condenado, por exemplo, a prestar serviços à comunidade ou a entidades públicas. O artigo da lei de drogas que veda tal conversão foi nessa parte declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, o que levou o Senado a suspender sua execução.
Em verdade, o tráfico de entorpecentes – em que pese ser tratado com rigor pela Constituição (artigo 5.º, inciso XLIII) – tornou-se crime corriqueiro e grande parte daqueles que o praticam não mais se intimida com as incompatíveis penas a que são condenados. A certeza desses traficantes é uma só: se presos, a liberdade não tardará a chegar.
Cresceram tanto os direitos dos autores de crimes neste país – e falam tão alto – que inibem a voz, já rouca, das vítimas, de suas famílias e de toda a população ordeira que aqui vive.
A sensação de impunidade dos traficantes e de outros criminosos vem tomando conta também dos adolescentes infratores. Daí a presença marcante de menores no tráfico de drogas. E essa sensação atinge os não poucos estrangeiros que resolvem aqui praticar o comércio ilícito de drogas, atraídos pela hospitalidade brasileira e a frouxa legislação. Esta é, sem dúvida, a principal razão para o alto índice de criminalidade no Brasil: a impunidade.