Vítimas da austeridade

 

Às margens do rio Tâmisa, no centro de Londres, convivem lado a lado duas narrativas sobre a economia britânica que se enfrentam nas eleições desta semana. Uma economia que cria emprego e deixa para trás a recessão a um ritmo de crescimento de 2,8% anual, e seu miserável reverso. A caprichosa lógica de urbanismo da capital quis que o complexo de arranha-céus de Canary Wharf fosse erguido em Tower Hamlets, o bairro com mais fome infantil do país, onde metade das crianças vivem abaixo do limiar da pobreza.

O banco de alimentos de Tower Hamlets abriu em 2010 — mesmo ano em que o primeiro-ministro conservador David Cameron chegou ao poder — para atender o que sua diretora, Amy Kimbangi, chama de “fome escondida”.

— Passamos de alimentar quatro ou cinco famílias por semana para 35. Gente que paga aluguéis, tem trabalho, mas não é capaz de levar comida à mesa. Londres é uma cidade extraordinariamente cara e viver com o salário mínimo aqui é praticamente impossível — disse Amy.

O banco de Tower Hamlets pertence ao maior conglomerado de distribuição de comida de emergência do Reino Unido, a Trussell Trust. Em 2009 contava com 29 bancos, e hoje agrupa 445. Nos últimos meses distribuiu 1,1 milhão de lotes de comida, 27 vezes mais que há cinco anos.

 

 
 

As políticas de austeridade do governo Cameron afetaram o sistema de bem-estar social britânico. As ajudas do governo funcionavam como um complemento no orçamento das famílias, o que permitia às empresas manter a produtividade pagando salários médios que estão entre os mais baixos de toda a Europa. Um estudo encomendado pela Igreja Anglicana, a Trussell Trust e a Ong Oxfam, que relaciona diretamente os cortes no bem-estar social com o aumento do uso dos bancos de alimentos, solicita mudanças urgentes no “complicado, remoto e por vezes intimidante” sistema, para evitar que as pessoas caiam na pobreza. O governo Cameron considerou o estudo inconclusivo.

Duelo de números

A discussão sobre a austeridade domina a campanha. Cameron exibe como um troféu os resultados de cinco anos de severos cortes nos gastos: a economia britânica é a que mais cresce na Europa (2,5% em 2014), sem inflação e com o desemprego em 5,6%. Seu rival, o trabalhista Ed Miliband, ressalta estatísticas mais duras, vinculadas à queda da renda (5,1% menos que em 2007), a “desmontagem” da saúde pública, o aumento da pobreza e um alarmante deficit habitacional.

Mas assim como Cameron se viu obrigado a prometer medidas sociais para suavizar o discurso, Miliband se esforça em garantir “orçamentos equilibrados” que não comprometam a recuperação econômica. Ganhe quem ganhar, os britânicos se preparam para receber outra dose de austeridade.

— Os eleitores assimilaram como uma verdade a ideia de que necessitamos reduzir o gasto. Talvez por isso não existe no Reino Unido um partido contra a austeridade, como o Podemos, na Espanha, ou o Syriza, na Grécia. Existe uma ideia de que os problemas do passado estão relacionados porque gastamos muito — disse o pesquisador Joe Twyman, da consultoria YouGov.

Cameron abaixou o déficit que herdou dos trabalhistas em 2010 de 9% para 5,4% do PIB. Se propõe em deixar o poder em 2020 com superávit. Para contrabalançar os cortes, corteja os eleitores com a promessa de “financiamento ilimitado” para o sistema nacional de saúde e com um programa de “moradias para todos” com créditos subsidiados.

— Queremos mais dívida, mais impostos e mais gastos descontrolados, ou queremos cuidar desta recuperação que tanto nos custou? — diz o premier em seus discursos.

Miliband contra-ataca com a denuncia de que os conservadores só buscam beneficiar os ricos. Vende responsabilidade fiscal e ao mesmo tempo uma divisão justa da riqueza: promete terminar com um regime de impostos que favorece os supermilionários, aumentar taxas sobre mansões, subir o salário mínimo, e terminar com os contratos de “zero hora”.

Este instrumento de flexibilidade trabalhista é um símbolo dos tempos atuais. A redução do desemprego no Reino Unido vem acompanhada de normas que permitem a uma empresa contratar funcionários, mas só chamá-los para trabalhar nos dias em que são necessários. Para os jovens, pode ser a única via de entrar no mercado, mas é insuficiente para conseguir uma casa e serviços básicos.

— Estou contratada em uma empresa, mas há uma semana que não me chamam — conta Anna Stewart, de 24 anos que faz fila em um banco de alimentos em frente à abadia de Westminster.

A pobreza e perda de poder aquisitivo inflamam o discurso do populista Ukip (Partido pela Independência do Reino Unido). Mas sua retórica não culpa as medidas de austeridade, senão a imigração de europeus do Leste. Mais de um milhão de romenos, poloneses, letãs, búlgaros e estonianos chegaram ao Reino Unido desde que a União Europeia incorporou os ex-países soviéticos, em 2004. Eles ficaram com um terço dos empregos criados nos anos Cameron. O Ukip os acusa de desvalorização salarial e déficit de moradia. A mensagem contra a austeridade só é ouvida entre os Verdes e o Partido Nacional Escocês (SNP) — que pode ser decisivo para a formação de um governo trabalhista.

Desde que abriu o banco de alimentos independente Connect 25, no ano passado a rotina da ativista Matti Letsie é começar os dias coletando alimentos doados por um supermercado.

— É comida que, de outra forma, acabaria no lixo — explica Letsie. — Creio que da mesma maneira que o governo trata da dívida e de levar o país a uma boa situação financeira, deve buscar um equilíbrio. Eles têm que olhar como as coisas que fazem afetam o cidadão comum. (Do El País e do La Nación)