O globo, n. 29862, 11/05/2015. Opinião, p. 14

Tema em discussão: O ajuste em pensões e outros benefícios

Corrigir distorções

A revisão de regras, por absurdas, já deveria ter sido feita, e agora não é mais possível mantê-las

Que sindicatos, tradicionais aliados do PT, reagiriam ao ajuste fiscal, era certo. Também em 2003, ao assumir o primeiro mandato, Lula deu um “cavalo de pau” na economia e adotou o que a sensatez aconselhava: um programa racional de equilíbrio das contas públicas. Como previsto, deu certo, e Lula, também ajudado por um ciclo histórico de crescimento mundial, conseguiu superar a crise política do mensalão, reelegeu-se e impôs a sucessora, Dilma Rousseff, ao próprio PT.

Já Dilma padece. Tem o mesmo bom senso de Lula de 2003, mas a conjuntura mundial não ajuda, nem ela ostenta o carisma do seu criador. Há o fato de Lula, ao menos na campanha, em meados de 2002, ter sinalizado em documento (Carta ao Povo Brasileiro) que não agrediria o mercado. Dilma não deu qualquer pista.

Mas, a esta altura, não importa: ela precisa mobilizar apoio parlamentar para aprovar as duas medidas provisórias que reduzem aberrações na concessão de benefícios (pensão por morte, auxílio-doença, segurodesemprego, abono salarial e seguro defeso, este para pescadores). Estão em jogo a estabilidade do país e, por tabela, a de seu governo. Os números dão superlativa razão ao ajuste que a presidente, contra suas convicções, executa.

Mas o debate, politizado ao extremo, não é travado em bases racionais. Se fosse, o quadro de crise fiscal seria suficiente para vencer resistências. Os dados de 2014 são expressivos: déficit público nominal de 6,7% do PIB (da dimensão de país europeu na crise mundial), déficit primário (sem considerar os gastos financeiros) de 0,63%, e, em decorrência de tudo, aumento da dívida pública bruta de 53,7% do PIB para 63,4%. Passou a ser real a possibilidade de a nota de risco de crédito do Brasil no exterior ser rebaixada para aquém do “grau de investimento”.

Na prática, diversos fundos de investimento globais abandonariam os títulos brasileiros, forçados por dispositivos estatutários. Eles estão autorizados a fazer aplicações apenas de baixo risco. O reflexo interno seria (ou será) nova onda de desvalorização do real, com efeitos péssimos na inflação.

Fazer o ajuste, portanto, é crucial. E na busca da meta de uma economia de 1,2% do PIB, os ministros da Fazenda, Joaquim Levy, e do Planejamento, Nelson Barbosa, propõem ao Congresso cortes por meio da correção de distorções graves em certos benefícios. Os gastos com pensões por morte são um deles. Com regras benevolentes, inexistentes em outros países, essas despesas cresceram 0,7 ponto percentual do PIB entre 1997 e 2013, e tendem a explodir com o envelhecimento da população. No seguro-desemprego, há mais distorções: mesmo com o mercado de trabalho vigoroso, em 2013, por exemplo, os gastos cresceram, um enorme paradoxo. Isso porque uma regulação frouxa permitia o uso do seguro como complementação de renda. Daí ele ter passado de 0,5% para 0,9% do PIB em dez anos. Distorções semelhantes ocorriam no auxílio-doença.

A lógica leva à conclusão de que essa reforma deveria ter sido feita antes. Não foi; portanto, não há alternativa: tem de ser executada agora.

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Mais desigualdades

Miguel Torres

As MPs, retrocessos sociais, deixam o trabalhador vulnerável ao atingir sua proteção

Um famoso ditado diz que a solução mais fácil para o problema da dor de cabeça é cortar a cabeça fora. Esta foi a premissa do governo para editar a medida provisória 664, que pune a classe trabalhadora restringindo e dificultando o acesso ao auxílio-doença e à pensão por morte.

Com a falácia de acabar com distorções, o governo, que foi eleito prometendo não mexer em direitos, quer aprovar medidas que retiram conquistas dos trabalhadores. As centrais sindicais, que historicamente têm atuado no combate ao mau uso de recursos públicos, reconhecem a necessidade de transparência e maior controle social em sua gestão, mas consideram um equívoco que essa correção se dê por meio de ações contra os trabalhadores. Fraudes e distorções devem ser combatidas, mas com fiscalização rigorosa e eficaz, não com a retirada de direitos.

Incluídas na MP, as alterações no auxílio-doença e na pensão por morte estão entre as mais preocupantes. No caso do auxílio-doença, a MP transfere à iniciativa privada o que é atribuição da Previdência, o que reduz o acesso do trabalhador ao sistema de seguridade social, além de produzir efeito negativo na redução das desigualdades, visto que o papel da seguridade é, sobretudo, proteger pessoas em situação de vulnerabilidade. Com a perícia nas mãos das empresas, os empresários poderão “mascarar” qualquer caso de doença ou acidente de trabalho de acordo com seus interesses.

Outra mudança nefasta refere-se ao pagamento do auxílio-doença. Um trabalhador que recebia o benefício depois de 15 dias de licença médica, e tinha por rendimento o resultado de 80% dos maiores salários recebidos, com a nova regra passa a receber após 30 dias, e o valor passa a ter teto igual à média dos últimos 12 salários. Quer dizer, a MP muda a forma de cálculo da contribuição, resultando na redução dos vencimentos do trabalhador que necessita se afastar do trabalho para se tratar. A MP afeta, ainda, a pensão por morte, cortando 50% do benefício e impondo regras que ferem a Constituição, os direitos humanos e, sobretudo, o amparo à velhice de milhares de trabalhadores. E atinge especialmente os trabalhadores de baixa renda (57,5% das pensões são de um salário mínimo).

Não podemos nos calar diante dessa medida, que fragiliza as relações de trabalho e fere o fundamental direito à saúde, imprescindível à dignidade da pessoa. O dia 28 de abril é lembrado como Dia Mundial em Memória das Vítimas de Doenças do Trabalho. No Brasil, dados do MTE revelam que 700 mil acidentes de trabalho são registrados a cada ano. A MP 664 e a MP 665, que restringe o acesso ao seguro-desemprego e ao abono salarial, são retrocessos sociais, tornando o trabalhador e sua família mais vulneráveis ao atingir sua proteção social.

Se aprovadas, as medidas contribuirão, e muito, para o aumento das desigualdades no país.