A desafiadora ilha caribenha que escreveu seu nome no século XX

 

Do triunfo da Revolução Cubana, em 1959, ao atual degelo com os EUA, O GLOBO acompanhou cada passo do movimento que mudou a ilha e a História da América Latina no século XX. Exatamente 53 anos, 1 mês e 25 dias separam duas edições históricas do GLOBO. A primeira, de 23 de outubro de 1962; e a segunda, de 18 de dezembro de 2014, abrem e encerram, respectivamente, um hiato nas relações diplomáticas entre Estados Unidos e Cuba. Naquele longínquo 1962, O GLOBO noticiava em letras garrafais: “Decretado o bloqueio de Cuba”, enquanto toda a página era dedicada ao tema, algo raro na época, e consequência direta da Guerra Fria. O dramático discurso do presidente americano John F. Kennedy, que revelava a existência de uma ameaça nuclear às Américas no episódio conhecido como Crise dos Mísseis, dava o tom da cobertura.

AP/ ARQUIVODias de festa. Fidel Castro faz discurso histórico no centro de Havana, logo após vitória da revolução, em 1959: cubanos foram às ruas comemorar

Tudo começara três anos antes, com a Revolução Cubana, quando um movimento guerrilheiro liderado por Fidel Castro, Camilo Cienfuegos e o argentino Ernesto “Che” Guevara tirou do poder o ditador Fulgencio Batista. No dia seguinte, O GLOBO noticiava: “Fogem em massa os partidários de Batista: (...) Santiago de Cuba é a nova capital provisória do país”.

Víctor Lorenzo, à época com 20 anos, estava no Ensino Médio quando Fidel chegou ao poder. Vivia numa cidade rural e relembra a festa nas ruas:

— Foi um júbilo completo. Todos comemoraram, num sentimento de expectativa e esperança pelas mudanças políticas, com muita ansiedade após anos de repressão — conta ele, que hoje é engenheiro aposentado e vive do turismo. — Em Havana, nas cidades grandes e nas pequenas, todos sentiam a mesma coisa naquele momento. Até os povoados pequenos, como o meu, tinham seus próprios mártires.

CADÁVER DO CHE NA PRIMEIRA PÁGINA

Naquele ano, Fidel formou um governo com representantes da oposição, e visitou os EUA, que apoiaram o novo governo cubano. Nos meses que se seguiram, no entanto, o Partido Comunista passaria a ocupar posições estratégicas e, em Miami, o ódio a Fidel já se articulava num movimento anticastrista. Meses depois, O GLOBO mostrava a apreensão do Brasil com os acontecimentos que se seguiram e protestos pelo país e pelo mundo. Por fim, em 1962, veio o anúncio do bloqueio.

Aos 71 anos, Elizardo Sanchéz está há 47 na “resistência”. Ex- professor de Filosofia Marxista na Universidade de Havana, o cubano assistiu de perto ao que aconteceu. Mais especificamente de dentro do Partido Comunista, do qual era membro em 1959. Pouco depois da tomada do poder, descontente com os rumos que a revolução havia tomado, fundou o que chama de “oposição da esquerda”, o Partido Socialista Popular, desfeito meses depois.

— Logo depois nos expulsaram das universidades e dos jornais. Foi ali que deixei de militar politicamente — conta ele, que hoje dirige a Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional ( CCDHRN). — Che Guevara, a quem conheci pessoalmente, foi uma pessoa de luzes e sombras. A parte das luzes todos conhecem, e o governo mantém o mito vivo. Mas foi também um homem sanguinário, que dirigiu a prisão de Cabañas, decidindo quem vivia e quem morria — conta.

Em abril de 1961, o tema era noticiado na primeira página: “Oito fuzilamentos e conspiração contra a vida de Fidel Castro”. Também na primeira página, uma foto mostrava uma manifestação pró- Fidel em Nova York, que reuniu cerca de mil pessoas. Uma demonstração da dualidade daqueles anos. Outra capa histórica, em 11 de outubro de 1967, confirmava a morte de Ernesto Guevara. Para comprovar o feito, uma foto do cadáver: “Che Guevara morreu assim, de olhos vidrados”.

— Mostrar uma foto de Che morto na primeira página simbolizava a perspectiva do fim do projeto guerrilheiro na América Latina despertado por Cuba — explica o professor de História Luís Eduardo Mergulhão, doutor pela Uerj.

Anos depois, já em 2008, a histórica renúncia de Fidel Castro, por problemas de saúde, voltou a ganhar os holofotes: o futuro da ilha com a saída do líder que a governou por quase meio século ganhou um caderno especial: “O comandante sai de cena”, dizia a manchete de 20 de fevereiro daquele ano. Como muitos outros temas relativos à ilha, a progressiva reabertura política e econômica, além da histórica retomada de relações com os EUA, em dezembro passado, vem sendo acompanhada de perto pelo jornal. Este ano, a série especial “Retratos da ilha” mostrou as mudanças recentes no país.