Vida em transe

 

Meninas dependentes químicas em centro na Penha. A prefeitura mantém casas para filhos de jovens viciadas como a grávida de 13 anos recolhida no domingo. Ontem, ela deixou o abrigo. Já foram mais de 20 fugas. Aos 9 anos, ela passou pela primeira vez por um abrigo. Desde então, foram mais de 20 recolhimentos e um sem- número de fugas. No último domingo, depois de ser flagrada cheirando tíner na orla de Copacabana, ela foi levada mais uma vez por assistentes sociais. Mas, dessa vez, não estava sozinha como sempre viveu, já que a mãe também fora menina de rua: na barriga, a garota de 13 anos carrega um bebê. Agora, são duas crianças em risco. Nem a gravidez avançada, já no sétimo mês, mudou o desfecho da rotina de idas e saídas de abrigos. No mesmo dia em que foi levada, ela pulou o muro do centro de acolhimento e foi embora, de volta para sua vida errante. Ontem, foi reencontrada, e uma nova tentativa foi feita para resgatá- la do abandono. Avessa à conversa, deu de ombros e saiu deixando para trás poucas palavras e muita perplexidade sobre qual é o caminho para salvar infâncias perdidas para a pobreza, as drogas e a falta de um lar. O caso expõe as fragilidades do sistema de proteção, precário e de baixos resultados.

DOMINGOS PEIXOTO/ 21- 6- 2015Abordagem. Em Copacabana, agentes da prefeitura conduzem a jovem de 13 anos, grávida de sete meses, para um abrigo: no mesmo dia ela pulou o muro da unidade e fugiu

— Não estou nem aí — disse a jovem grávida, ao recusar ontem o atendimento na Clínica da Família em Del Castilho, no mesmo bairro onde fica o abrigo Taiguara, de onde escapou pulando o muro.

Ela havia sido encontrada, na manhã de ontem, por equipes da Secretaria municipal de Desenvolvimento Social. A imagem da menina grávida cheirando tíner chocou a todos, até mesmo os mais habituados a lidar com jovens em situação de risco. Mas ela não quis sequer descer da van para o atendimento médico.

Só de 3 de junho até ontem, a adolescente foi levada pelas equipes da prefeitura oito vezes ao Taiguara. O maior período de tempo em que ficou no abrigo foi de quatro horas, segundo a diretora da unidade, Rachel Aguiar. O filho que a adolescente espera — ainda não se sabe se é menino ou menina — pode ser a terceira geração da família na rua. A mãe dela, hoje com 35 anos, tem histórico parecido e já passou pela rede de acolhimento. — A mãe da adolescente também já viveu nas ruas. Hoje, imagina- se que continue. Ninguém sabe dela. Nem a própria filha. A assistência social tentou a inclusão dela em projetos sociais e sua responsabilização sobre as filhas, mas sem sucesso — disse Rachel.

No histórico da adolescente de 13 anos, há relatos de violência doméstica. Por isso, há quatro anos os pais perderam a guarda de três filhas — sendo a adolescente grávida a mais velha —, e todas foram para um abrigo filantrópico em Coelho Neto. As duas irmãs dela — hoje com 7 e 12 anos — foram adotadas. A terceira adolescente fugiu do orfanato no início do ano passado e não teve a mesma oportunidade. Para a artista plástica Yvonne Bezerra de Mello, fundadora da organização não governamental Uerê, que atende crianças carentes no Complexo da Maré, as fugas de jovens de abrigos vão continuar frequentes se o Estado não investir em projetos diferentes, atraentes para quem vive nas ruas:

— Convencionou- se no Brasil o direito de ir e vir, que faz com que o Estado deixe que crianças fiquem na rua, que entrem em abrigos e saiam deles. Isso é um crime e vai continuar acontecendo se o governo não oferecer abrigos com uma infraestrutura menor, que atraiam as crianças e ofereçam um pai e uma mãe social, algo parecido com uma família. Agora, colocam num lugar sem cor, sem nada, e a criança vai gostar? A maneira de abrigar está errada, não é acolhedora.

Nas ruas, segundo sua ficha, a adolescente se envolveu com drogas. Em agosto de 2014, o Juizado da Infância e da Juventude expediu um mandado de busca e apreensão compulsória da jovem. A ordem era para conduzi- la a um hospital psiquiátrico assim que fosse localizada. Encontrada no mesmo ano, ela foi levada para o Instituto Philippe Pinel, em Botafogo, onde ficou internada por 20 dias até receber alta médica. Encaminhada para um abrigo de atendimento especializado municipal, optou, mais uma vez, por não ficar.

— A atitude dela inviabiliza qualquer intervenção médica e social. Tudo o que temos a oferecer foi ofertado: acolhimento especializado, atendimento médico, alimentação, lazer. Não sei dizer o que seria suficiente para romper isso — disse Rachel.

O abrigo no qual a adolescente se nega a ficar tem espaço para 20 crianças e adolescentes. No entanto, só ontem, de 14 que deram entrada, dez saíram logo depois. No início da noite, um grupo de três crianças acolhidas nas ruas não passou nem pelo primeiro atendimento. Ainda no pátio, muito agitadas e demonstrando rejeição, elas tentaram fugir pelo muro. Outra adolescente chegou ao local com pequena quantidade de cocaína e foi para a delegacia.

GRÁVIDA DE 15 ANOS VENDE BALAS NA CENTRAL

Outras jovens enfrentam o drama da gravidez nas ruas. Uma equipe do GLOBO encontrou ontem uma garota de 15 anos grávida de sete meses nas proximidades da Central do Brasil, perto do prédio da Secretaria de Segurança. Ela contou ter saído de casa, na Baixada Fluminense, por problemas com a família. Desde os 11 anos, a menina não sabe o que é ter um lar. Ela disse já ter sido acolhida 14 vezes pela prefeitura e levada para o abrigo Taiguara. Fugiu em todas as vezes. A última fuga, afirmou, foi em janeiro:

— É fácil. É só pular o muro da frente. A placa com o nome do abrigo está torta porque todo mundo se apoia nela para descer do muro e ir embora.

Franzina e com a barriga proeminente à mostra, ela segurava uma pequena caixa com balas que pretendia vender nas imediações da Central. Queria garantir o almoço no Restaurante Popular, que custa R$ 2. De fala tranquila, pareceu já estar acostumada à dureza do dia a dia nas ruas. Ao ser perguntada sobre a menina de 13 anos que cheirava tíner em Copacabana antes de ser acolhida pela Secretaria de Desenvolvimento Social, a adolescente disse que a conhece:

— Só não lembro o nome dela agora. Ela fica na área do tíner ( região frequentada por pessoas usuárias da droga). Pode ser que esteja na rodoviária aqui perto ( na Central do Brasil) ou na Rua Uruguaiana. Ou pode ter voltado para Copacabana — informou, completando. — Meu marido fuma maconha o dia inteiro. De vez em quando vende alguma coisa. Eu não uso drogas. Nunca usei.

Cerca de uma hora e meia depois do primeiro encontro, a garota foi encontrada novamente pelo GLOBO na Rua Senador Pompeu, em frente ao Restaurante Popular. Dessa vez, estava ao lado do companheiro, que fumava um cigarro de maconha. A adolescente não reconheceu a equipe de reportagem. — Quem são vocês? — perguntou. A garota contou ter saído de casa, em Queimados, porque, com a mãe alcoólatra, um de seus 11 irmãos passou a ditar as regras na família.

— Ele me proibia de tudo. Não me deixava sair de casa. Aqui tenho liberdade. Posso brincar com quem eu quiser — afirmou, contando ter estudado até o 4 ª ano.

A adolescente tem feito o acompanhamento da gravidez num posto de saúde na Gamboa.

— É um menino. Vai se chamar Júlio Cesar. Quando ele nascer, vou morar numa casa — afirmou, sem, no entanto, saber como vai colocar em prática seu sonho.