Valor econômico, v. 16, n. 3764, 27/05/2015. Brasil, p. A2

 

Fogo amigo e cheiro de fritura no ar

 

Por Cristiano Romero

Demorou um pouquinho, mas o fogo amigo emergiu com toda força. O objetivo é claro: enfraquecer o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e o ajuste fiscal em curso. Não adianta tapar o sol com a peneira: a presidente Dilma Rousseff e o Partido dos Trabalhadores (PT) não aceitam o ideário econômico defendido por Levy e sua equipe.

O ministro da Fazenda desejava fazer um contingenciamento no orçamento entre R$ 70 bilhões e R$ 80 bilhões. Seu colega do Planejamento, Nelson Barbosa, responsável em última instância pelos cortes, entregou R$ 69,9 bilhões. Pareceu a Levy coisa de marqueteiro de loja de bugiganga: 1,99 em vez de 2; 9,99 no lugar de 10; 69,9 para não ser... os 70 reivindicados pelo guardião das contas públicas.

Quem conhece Nelson Barbosa de outros carnavais não teve dúvida: a escolha dos 69,9 foi um recado dos críticos da ortodoxia econômica, dentre eles, a própria presidente e o ministro Casa Civil, Aloizio Mercandante. A mensagem era: "Levy pode muito, mas não pode tudo".

Fazer corte de 69,9 e não de 70 foi recado de críticos a Levy

O diagnóstico da economia neste momento é o seguinte: por causa do abandono da responsabilidade monetária e fiscal nos últimos quatro anos, o Brasil vive hoje uma estagflação. A inflação supera a casa dos 8%, uma das maiores do planeta, e o produto está estagnado. O país já está em recessão - a mediana das expectativas prevê queda de 1,24% do PIB em 2015 e crescimento de apenas 1% no próximo ano.

No espaço de apenas quatro anos, sem ganhar nenhum benefício com isso, a economia acumulou perigosos déficits gêmeos - fiscal e externo - que, se não forem reduzidos nos próximos anos, podem jogar o país numa situação de calote, que, nas trágicas décadas perdidas dos 80 e 90 do século passado, provocou hiperinflação, crise do Estado, ausência de financiamento e investimento externo, uma brutal concentração da renda e aumento exponencial dos níveis de pobreza.

Sob pressão do ex-presidente Lula, preocupado com o projeto de poder do PT depois de quatro mandatos presidenciais, a presidente Dilma chamou Levy para conduzir o ajuste necessário, antes que o mercado o promova ao seu jeito: de forma abrupta e desorganizada e, portanto, com enorme custo social.

Quando Lula a procurou, depois do segundo turno da eleição presidencial, Dilma gostaria de nomear Nelson Barbosa para o comando da Fazenda. Lula saiu da conversa, que durou quase seis horas, convencido de que o escolhido seria Barbosa. O ex-presidente chegou a manifestar a Dilma que o atual ministro do Planejamento não seria um nome suficiente para acalmar os mercados.

Naquele colóquio, Lula tentou mostrar à presidente que apenas um nome de peso, amigável aos mercados, ajudaria a reverter as expectativas negativas. Ele sugeriu o nome de Luiz Carlos Trabuco, presidente do Bradesco, e Dilma ficou de convidá-lo para uma conversa. Trabuco foi sondado e só não virou ministro porque seu chefe, Lázaro Brandão, presidente do conselho de administração do Bradesco, vetou a nomeação. Os dois indicaram, então, Joaquim Levy, nome que já vinha sendo trabalhado desde a campanha por Lula e o ex-ministro Antonio Palocci.

Tendo escolhido Levy contrariada, Dilma convidou Nelson Barbosa para o Planejamento. A escolha foi corretamente interpretada como parte da estratégia da presidente de estabelecer uma tensão natural na área econômica do governo. Afinal, quem é Nelson Barbosa?

Barbosa foi levado por Guido Mantega para assessorá-lo no Planejamento em 2003. Em 2010, ao escrever a quatro mãos com José Antonio Pereira de Souza um capítulo do livro "Brasil, entre o passado e o futuro", Barbosa assegurou que deixara o Planejamento antes do segundo ano do primeiro mandato de Lula por discordar das políticas "neoliberais" conduzidas pelo então ministro Antonio Palocci.

Quando Mantega assumiu o lugar de Palocci, em março de 2006, Barbosa foi nomeado secretário-adjunto de Política Econômica. Durante a campanha presidencial daquele ano, licenciou-se para assessorar Lula. No ano seguinte, voltou ao ministério e assumiu o posto de titular da Secretaria de Política Econômica. Naquele período, aproximou-se da então ministra Dilma Rousseff e, pouco depois, tornou-se o número 2 da Fazenda.

Sempre crítico da política econômica que prevaleceu na gestão Lula - a inflexão da política fiscal começou em 2007 e acelerou após a crise mundial de 2008, mas o ex-presidente jamais deixou que mexessem na autonomia operacional do Banco Central -, Barbosa foi o principal mentor das mudanças operadas na política econômica durante o primeiro mandato de Dilma.

As bases da mudança estão em apresentações feitas entre 2011 e 2013. A principal delas está neste endereço: migre.me/q1I3l. Lá, o economista, num slide de título sugestivo - "Além do Consenso de Washington: Política Macroeconômica" -, fundamenta o que estava por vir - a subversão, por dentro, do tripé de política econômica que regia o Brasil desde 1999.

Em meados de 2013, ao perceber que o desastre do avião (pela combinação de erros) era iminente e travando uma disputa fratricida por poder com Mantega e o então secretário do Tesouro, Arno Augustin, Barbosa tratou de sair à francesa, deixando com a dupla toda a responsabilidade pela tragédia. Em seu recesso, aproximou-se de Lula e abrigou-se num "think tank" de insuspeito corte liberal, o Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV do Rio. Foi a forma encontrada de ganhar um brilho liberal, já que, de forma inteligente, previu que, no segundo mandato, Dilma seria obrigada a dar um tranco na economia para corrigir os desequilíbrios criados pela "nova matriz". Com uma possível desgraça de Levy, Barbosa quer fazer todos crerem que, com ele, as coisas vão andar porque ele é "confiável"...

E onde está Lula neste momento? Jogando para a plateia petista, em polvorosa com o ajuste. Num dado momento, defende o ajuste fiscal. Em outro, critica-o. Ontem, em seu blog, o ex-ministro José Dirceu atacou Levy sem dó nem piedade: "O que ele [Levy] chama de emocionante e fácil são os impostos sobre grandes fortunas, heranças, maior progressividade do Imposto de Renda e algum tipo de imposto sobre a movimentação financeira ou sobre os lucros. O que o ministro não explica é por que taxar os mais pobres e não os mais ricos. Porque ele pode (e deve!!) aumentar a alíquota sobre o lucro dos bancos mas não pode taxar as grandes fortunas ou as heranças".

Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras

E-mail: cristiano.romero@valor.com.br